O triunfalismo e a teologia da precariedade
É normal nos enganarmos na vida (Jr 17.9) e na teologia (Jó 42.3; Rm 11.33). As
igrejas cometeram enganos (At 6.1) e ainda os cometem. Olhando o quadro geral
dos equívocos dos evangélicos, pergunto-me o que os causa. Talvez seja o
triunfalismo, que precisa ser denunciado e contraposto a uma alternativa: uma
teologia da precariedade.
Defino o triunfalismo como a crença equivocada de que, por sermos crentes em
Cristo, devemos ser vitoriosos em tudo, jamais experimentando fracassos ou
reconhecendo fraquezas físicas, morais, intelectuais e espirituais. Falta ao
triunfalista o sentimento trágico da vida, um reconhecimento de suas limitações.
A arrogância evangélica triunfalista vai das certezas inamovíveis dos teólogos
até as irreverentes demandas para com Deus. A teologia da precariedade foca
nossa condição espiritual precária, intelectualidade precária, moral precária,
na compreensão de que não somos chamados para ser anjos, mas humanos que andam
humildes diante de Deus (Mq 6.8), sabedores dos nossos limites e bondosos para
com os outros em “seus” limites.
O contraste começa na oração. O cerne da piedade precária é uma vida de oração
fragilizada, modelada pelos Salmos, em que se busca comunhão e intimidade com
Deus por meio da gratidão, da autoexpressão (inclusive frustrações, Sl 13.1),
do autoconhecimento (Sl 90.8), da confissão (Sl 51.9), da sujeição (Sl 25.4) e
da comissão (Sl 143.10), em oposição às infindáveis petições típicas da oração
triunfalista, que pede mal (Tg 4.3), almeja vitórias terrenas e vê na oração
uma solução mágica. A petição precária pede sabedoria e espiritualidade (Lc
11.13) para lidar com problemas e sofrimentos, encarados como algo normal, e
prefere rogar com Cristo: “faça-se a tua vontade” (Mt 6.10).
Ser cristão não garante vitória em qualquer faceta da vida, da saúde às
finanças, das ideias teológicas ao ministério. Dizem que não demandá-las de
Deus é falta de fé (não sabem que “’tudo’ é vaidade”? Ec 1.2). Demonstram falta
de contentamento (1Tm 6.6). Em Cristo temos vitórias espirituais: a
justificação dos pecados, a santificação pessoal, a salvação eterna. Triunfamos
sobre a morte espiritual sem nunca deixarmos de ser pecadores (1Jo 1.10). A
jornada espiritual até a varonilidade de Cristo é fruto da ação paciente de
Deus (Cl 2.8), livrando-nos do orgulho e da rebeldia que nos tentam a vida toda
(Rm 8.19).
Seguir a Cristo é abnegação, é “tomar a cruz” (Mt 16.24). Não simplesmente
sofrer, que é parte da condição humana (Tg 5.10), mas completar em nós os
sofrimentos de Cristo (Cl 1.24) por meio do cumprimento de nosso ministério,
assim como Cristo cumpriu o seu. Cristo não promete a seus discípulos uma vida
fácil, com vitórias na vida financeira, na saúde e nos relacionamentos (Mt
10.5-23). Cristo e os apóstolos eram pobres, passavam por dificuldades (Hb
2.10), inclusive de saúde (Gl 6.11; 1Tm 5.23), e tinham toda sorte de
complicações relacionais entre si (At 15.39; Gl 2.11). Estiveram presos, e
viram isso como um privilégio e uma oportunidade (2Tm 1.8).
Ensina-se equivocadamente que tornar-se um crente em Cristo significa ter
acesso a uma vida de bênçãos materiais e de vitória sobre todos os males que
afligem o corpo e a alma. Uma revista evangélica recentemente anunciou em sua
capa que Cristo é a solução para a depressão. Há, porém, muitos fiéis com
quadro clínico de depressão, e isso nada tem a ver com pecado ou falta de
espiritualidade. Há toda sorte de enfermidades físicas e psíquicas a que
estamos sujeitos, cristãos ou não, e por meio delas somos instruídos por Deus e
temos oportunidades ministeriais. Se recebemos de Deus o bem, não receberemos
dele também todos os males comuns da nossa condição humana (Jó 2.10)? Deus
torna os males em bênçãos (Gn 50.20). Procuremos descobrir qual o seu
significado em nossa vida e ministério.
O triunfalismo torna os crentes presunçosos (Sl 19.13). Em vez de estarmos
dispostos a compartilhar todas as mazelas da existência humana, e dessa forma
nos tornarmos capazes de empatia, queremos estar acima delas, e de todos os que
as enfrentam. Isso leva a uma vida de mentiras que contamos aos outros e a nós
mesmos. Na verdade, temos em comum uma vida de sofrimentos, enfermidades, relacionamentos
imperfeitos e fracassos. Nossa fé e nossa comunhão com Deus em Cristo não
impedem que enfrentemos crises e problemas, que vivenciemos fracassos, doenças
e tristezas, pois são parte comum e inevitável da vida de qualquer pessoa neste
mundo caído no pecado.
A fé nos traz a esperança de um mundo melhor (Ap 21.14), a certeza de que tudo
colabora para o bem (Rm 8.28), e de que nada acontece sem que Deus permita (Mt
10.29). Nossa comunhão com Cristo nos garante forças para suportar as aflições
com paciência (Tg 5.11), e impede de sermos tentados pelo desânimo quando
enfrentamos dificuldades na vida.
Quando somos transformados pela ação do Espírito Santo, nos desapegamos dos
bens materiais, e até do desejo neurótico pela saúde plena do corpo e da mente.
Desprendemo-nos até da vida biológica como valor em si, pois já morremos com
Cristo para esta vida terrena (Cl 2.11-12), e vivemos agora em Cristo e para
Cristo somente, sem medo da morte biológica (Fp 1.21).
O triunfalismo também está por trás do amor ao sucesso de lideranças
evangélicas que priorizam o crescimento e nivelam o ministério eclesial com o
empreendimento comercial secular. Têm por modelo os empresários bem sucedidos,
ostensivamente ricos, ou as celebridades, e não os pobres caminhantes da
Galileia. Não percebem que ministério sem o sacrifício do prestígio é o
sacrifício do ministério no altar do sucesso.
A piedade precária se contenta com ministérios desprestigiados e igrejas
pequenas que encontram a sua força na fraqueza (2Co 12.10). Igrejas não
precisam crescer, e não deveriam nem sequer almejar o crescimento, mas antes a
fidelidade a Cristo e à vocação e testemunho cristãos. Igrejas não são fins em
si mesmas, mas agências proclamadoras do reino de Deus. Por isso, elas podem
ser provisórias, institucionalmente frágeis e, do ponto-de-vista secular do
empreendedorismo, totais fracassos.
O triunfalismo efetua ainda uma atitude moral equivocada em que os crentes
passam a se ver como mais puros e santos que os pecadores incrédulos. O cristão
é santo porque foi “separado” para a missão de seguir a Cristo. O que nos
diferencia dos ímpios é sermos pecadores conscientes do pecado e da necessidade
da graça e do perdão de Deus, consciência esta que os ímpios não têm.
A moralidade triunfalista parte da criação de Deus, mas ignora a queda, e prega
uma proposta de conduta idealizada, mais adequada a anjos que a homens. No
paradigma da piedade precária, adota-se a redução de danos, pois vivemos em
mundo caído. Então deixamos de negar que as famílias evangélicas são
disfuncionais e encaramos os dramas morais dos evangélicos como o padrão, e não
mais como exceções.
O triunfalismo também nos torna soberbos intelectualmente (1Co 1.20), ignorando
os efeitos do pecado sobre sua razão. A piedade precária nos convida a uma
teologia fraca em que se reconhece que as opiniões teológicas e morais são
apenas aproximações. Somos como cegos apalpando nosso caminho; nossas
formulações doutrinárias e interpretações bíblicas são fruto da reflexão humana
historicamente condicionada.
O triunfalismo leva os evangélicos a achar que é errado ter incertezas e
dúvidas, que é feio admitir a ignorância, que o questionamento é sinal de falta
de fé. O cristão precário está sempre disposto a ouvir vozes discordantes, a
aprender com quem pensa diferentemente, inclusive com os incrédulos. Podem-se
aprender lições preciosas das pessoas mais incultas, bem como dos maiores
pecadores e hereges, pois todos têm alguma lição a dar, e ninguém, além de
Deus, é dono da verdade (1Co 8.1-3).
Convido todos os evangélicos a abandonar o triunfalismo, adotando uma teologia
da precariedade: caminho da fraqueza, humildade, ignorância, resignação e
desprendimento. Pensemos a comunhão com Cristo como uma jornada de santificação
pessoal que implica os tremendos sofrimentos advindos do abandono dos desejos e
concepções do velho homem (Ef 4.22), e não nas benesses de um favorecimento da
parte de Deus que nos permita obter exatamente as coisas de que deveríamos
antes nos desapegar. Abandonemos os desejos carnais pelo dinheiro, pela saúde,
por longevidade, cujo preço é a decrepitude.
Sacrifiquemos nossa vida no altar divino (Rm 12.1). Abandonemos o desejo carnal
por sistemas de pensamento que nos deem falsa certeza e tranquilidade (2Co
10.4-5). Que nossas opiniões sejam manifestadas com singeleza e reconhecimento
da nossa imperfeição intelectual (Cl 4.6). Ambicionemos apenas que Cristo seja
conhecido pelo nosso viver (Gl 2.20), ainda que saibamos desde já que também
nisso fracassaremos, pois muitas vezes nossa carnalidade nos impedirá de exalar
o bom perfume de Cristo (2Cr 2.14-17).
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