terça-feira, 31 de março de 2015

HERESIA E REFORMA


O fascínio da heresia: dissidência doutrinária na história cristã

Nestes tempos pós-modernos, com sua visão fragmentada e relativista da realidade, tem se tornado usual a apreciação pelo que é exótico, periférico, não convencional. No caso da história da igreja, há uma tendência em exaltar as expressões heterodoxas da fé cristã, considerando-as tão ou mais legítimas que o cristianismo majoritário, “oficial”. Porém, o fato é que, se tais manifestações tivessem se tornado dominantes, o evangelho conforme exposto no Novo Testamento teria sofrido distorções incontornáveis. A título de ilustração, vale a pena lembrar alguns desses fenômenos.
 

Nos primeiros séculos, numa época em que imperava certa indefinição teológica, surgiram muitos movimentos dissidentes no âmbito do cristianismo. Os casos mais conhecidos são os gnósticos e os montanistas. O gnosticismo (do grego “gnosis” = conhecimento) foi uma filosofia religiosa altamente especulativa que floresceu nos segundo e terceiro séculos, reunindo elementos mitológicos, helenísticos e cristãos. Baseava-se num dualismo radical entre espírito e matéria, elementos que teriam sido criados por diferentes divindades. Afirmava possuir um conhecimento secreto sobre a salvação, a ser transmitido somente aos iniciados. Sua total rejeição do mundo material questionou convicções cristãs centrais como a criação, a encarnação e a ressurreição.
 

Duas variantes do dualismo gnóstico foram o docetismo e o marcionismo. Os docetistas (do grego “dokéo” = parecer) se preocupavam antes de tudo em negar o caráter literal da encarnação do Verbo. Para eles, o Filho de Deus, ao vir a este mundo, assumiu apenas uma “aparência” de humanidade, não tendo um corpo material e físico como os seres humanos. Pode-se ver uma crítica dessa posição em textos como 1 João 4.2-3 e 2 João 7. Márcion, ou Marcião, que ensinou a sua doutrina na cidade de Roma em meados do segundo século, postulava uma total disjunção entre a antiga e a nova dispensação, rejeitando por completo o Antigo Testamento e a sua divindade, Iavé, tido por ele como o criador da matéria e, assim, um ser distinto do Pai de Jesus Cristo. Este último seria caracterizado pelo perdão, e não pela justiça, resultando na salvação de todas as criaturas, sem exceção.
 

O montanismo foi um movimento de natureza apocalíptica e carismática surgido na segunda metade do segundo século, na Frígia, Ásia Menor, a atual Turquia. Seu líder, o profeta Montano, alegava ser o instrumento do Paracleto, o Espírito Santo, visando preparar o caminho para a iminente volta de Cristo e o milênio. Entendendo ser dirigida diretamente pelo Espírito, a autodenominada “Nova Profecia” rejeitava a igreja institucional e seus líderes, os bispos. Surpreendentemente, o montanismo atraiu a simpatia de um famoso teólogo da antiguidade, Tertuliano de Cartago. Esse grupo e os anteriores subsistiram por vários séculos.
 

Na Idade Média, multiplicou-se o número de seitas dissidentes e exóticas que alegavam ter vínculos com a fé cristã. A mais famosa foi a dos cátaros (do grego “katharós” = puro), que floresceu no século 12 no Languedoc, sul da França. Eram também conhecidos como “albigenses”, nome derivado de Albi, a principal cidade em que se concentravam. Esse movimento, herdeiro dos paulicianos e bogomilos dos nono e décimo séculos, abraçava um sincretismo cristão, gnóstico e maniqueísta marcado por um dualismo radical e um extremo ascetismo, os quais tinham implicações bastante negativas para a fé cristã histórica. Os cátaros foram suprimidos por uma cruzada convocada pelo papa Inocêncio III em 1209. Ele e seu sucessor Gregório IX criaram um tribunal especial, a Inquisição ou Santo Ofício (1233), para lidar com esse e outros casos de heresia.
Ao longo do tempo, multiplicaram-se os grupos cristãos dissidentes no Ocidente, mas um fenômeno particularmente notável ocorreu nos Estados Unidos nos séculos 18 e 19. Num contexto marcado por enorme fermentação intelectual, social e religiosa, surgiram não somente seitas inusitadas, mas verdadeiras religiões novas que se consideravam herdeiras legítimas do cristianismo. Entre as seitas estavam as chamadas “comunidades utópicas”, como os “shakers” e a Comunidade de Oneida. A fundadora dos “shakers” foi “mãe” Ann Lee Stanley (1736–1784), de New Lebanon (Nova York), que acreditava ser Cristo em sua segunda vinda. Esse grupo tinha uma visão fortemente negativa da sexualidade, acreditava na comunicação com os mortos e praticava uma dança coletiva de onde veio o seu nome. Já a Comunidade de Oneida, também no Estado de Nova York, idealizada por John Humphrey Noyes (1811–1886), ficou notória pelo “casamento complexo”, a ideia de que os membros deviam ter tudo em comum, inclusive as esposas.
 

Quanto às religiões novas, as mais conhecidas são o mormonismo e a Ciência Cristã. A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias foi fundada por Joseph Smith Jr. (1805–1844) e tem sua sede mundial em Salt Lake City, no Estado de Utah. Adota o Livro de Mórmon e outros escritos ao lado da Bíblia e defende ensinos como a corporeidade de Deus, a divinização do ser humano e o batismo em prol de parentes falecidos. A Ciência Cristã surgiu dos ensinos de Mary Baker Eddy (1821–1910), cujos escritos são considerados inspirados. A igreja-mãe está localizada em Boston e suas crenças incluem as seguintes: panteísmo (tudo é Deus), a matéria não existe, o mal e o pecado são imaginários, existem provações depois da morte.
 

Enfim, é vasto o cardápio de excentricidades com maior ou menor grau de afastamento do cristianismo clássico, inclusive no Brasil, conhecido por sua exuberante religiosidade. Na imensa maioria dos casos, tais movimentos resultam das ações de líderes personalistas, dotados de forte carisma e mania de grandeza, que reinterpretam a Escritura e a fé cristã de maneira particular e então conseguem reunir em torno de si um grande número de seguidores. Mais do que seus fiéis, eles têm responsabilidade diante de Deus pelos males que causam ao Corpo de Cristo.
 


Paradigmas da Reforma: três visões da Igreja


Dentro de poucos anos será comemorado o 5º centenário da Reforma Protestante. Isso significa que até 2017 muito irá se falar, escrever e debater sobre o significado e as implicações desse importante movimento do século 16, do qual muitas igrejas evangélicas se consideram herdeiras. Como se sabe, os diferentes reformadores abraçaram um conjunto de convicções e princípios comuns. Embora fundamentais, esses princípios não impediram que o movimento protestante se fracionasse em diversas correntes. No século 16, esses grupos foram quatro -- luteranos, reformados, anabatistas e anglicanos. Nos séculos seguintes, surgiram muitos outros, todos os quais, de alguma forma, desenvolveram ênfases que já estavam presentes nos quatro movimentos iniciais. Assim, os ramos pioneiros da Reforma representaram não somente diferentes confissões religiosas, mas também diferentes maneiras de entender a igreja e a vida cristã.

Tradição
Os reformadores se defrontaram com um dilema: eles queriam romper com certos elementos dogmáticos e comportamentais da igreja majoritária, mas ao mesmo tempo desejavam demonstrar um senso de continuidade com a longa história cristã anterior a eles. Em outras palavras, eles questionaram alguns aspectos do passado cristão, mas se esforçaram por manter outros. Isso aconteceu em diferentes graus nos movimentos iniciais da Reforma. Dois desses grupos foram especialmente escrupulosos no sentido de preservar tudo o que fosse possível da tradição cristã anterior: luteranos e anglicanos. Isso fica evidente em diversas áreas da vida da igreja, como o entendimento do ministério e do culto cristão.

Apesar de sua crítica contundente do catolicismo medieval, Lutero e seus seguidores preservaram o episcopado, um entendimento semicatólico da Ceia do Senhor, um forte destaque ao calendário eclesiástico e uma liturgia elaborada. Os anglicanos foram ainda mais enfáticos nesse esforço, dando imenso valor à sucessão apostólica, a hierarquia e a um culto aparatoso, fortemente marcado pelo ritual. Para um observador desavisado, uma cerimônia anglicana se parece bastante com sua equivalente católico-romana. Não obstante a influência inicial da tradição reformada ou calvinista, o anglicanismo abraçou consciente e intencionalmente uma síntese católico-protestante, apesar da presença de uma ala nitidamente evangélica nessa igreja (“Low Church”). Luteranos e anglicanos também procuraram manter o ideal da cristandade, ou seja, uma igreja única e hegemônica fortemente aliada ao Estado.

Experiência
Outro grupo inicial da Reforma Protestante tomou um rumo diametralmente oposto ao das igrejas retromencionadas -- os anabatistas, também conhecidos como “irmãos suíços”. Para esse segmento, o mais importante não eram os 1.500 anos de história e tradição anteriores, mas as origens mesmas do cristianismo, isto é, o Novo Testamento. Seu grande ideal foi voltar a viver como os cristãos da igreja primitiva. Com isso, seu movimento se caracterizou pela rejeição da pesada herança dogmática, litúrgica e institucional do catolicismo e do protestantismo magisterial. Para a mentalidade anabatista, o mais importante era o elemento experimental da fé cristã: o relacionamento com Deus, a necessidade de conversão, a separação do mundo e o exercício da fé.
 

Esses traços deram grande vitalidade espiritual aos “irmãos” e os capacitaram a enfrentar corajosamente as horríveis perseguições de que foram objeto em diversas regiões da Europa. Ao mesmo tempo, seu experiencialismo foi uma fonte de dificuldades que foram lamentadas pelos reformadores principais. Entre estas podem ser mencionadas o apelo a revelações diretas do Espírito Santo, o perigo de lideranças personalistas e o fanatismo gerado por convicções milenaristas. Com o tempo, esse grupo adquiriu maior sobriedade e equilíbrio, sob a direção de homens como o holandês Menno Simons, o originador dos menonitas.

Escritura
Uma terceira abordagem entre os grupos protestantes foi adotada pelos reformados ou calvinistas, que privilegiaram uma posição mediana entre o tradicionalismo dos luteranos e anglicanos e o experiencialismo dos anabatistas, ainda que abraçando certas preocupações desses movimentos. Historicamente, os reformados têm sido conhecidos por sua ênfase na Palavra de Deus, a revelação bíblica, como o fundamento primordial da igreja e da fé cristã. Eles entendem que nem a tradição nem a experiência devem ter a última palavra na vida e na espiritualidade cristã, mas devem estar sempre submissas à revelação objetiva de Deus nas Escrituras.

Como foi dito, o movimento reformado abraçou uma posição intermediária entre as outras duas alternativas, porém não as rejeitou por completo. À semelhança das tradições luterana e anglicana, o calvinismo tem um imenso respeito pela história cristã ao longo dos séculos, por muita coisa que os cristãos fizeram e falaram de positivo nos 1.500 anos anteriores à Reforma. São exemplos disso a sua apreciação pelos pais da igreja e pelas grandes formulações dos credos históricos, bem como pela riqueza e profundidade espiritual das liturgias antigas. De igual modo, a tradição reformada sempre valorizou os aspectos existenciais e práticos da vida cristã, como a vida devocional, a oração, a santificação e a obediência à lei de Deus. Tudo isso, no entanto, fica sempre subordinado à Palavra, que deve ter prioridade em tudo o que diz respeito à fé, ao culto e à vida.

Conclusão
Todas as igrejas protestantes que surgiram a partir do século 17 são herdeiras desses paradigmas do século 16, mesclando-os em diferentes proporções. No mundo contemporâneo, temos confissões que se destacam por sua reverência pelo passado, seu senso de continuidade histórica, sua valorização de formas institucionais e litúrgicas consagradas pela tradição. Outros grupos se caracterizam primariamente por sua espontaneidade, informalidade e intensidade espiritual, a partir de uma experiência direta do divino. Finalmente, há aqueles que, sem desprezar a tradição e a experiência, entendem que sua identidade deve ser moldada acima de tudo pelo compromisso com o que Deus revelou em sua Palavra -- o “sola Scriptura” dos reformadores do século 16. Que as igrejas filhas da Reforma reafirmem esse compromisso solene, para que possam ser fiéis ao evangelho de Cristo nos momentosos dias atuais.

FONTE REV.ULTIMATO 




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