O fascínio da heresia: dissidência doutrinária na
história cristã
Nestes tempos pós-modernos, com sua
visão fragmentada e relativista da realidade, tem se tornado usual a apreciação
pelo que é exótico, periférico, não convencional. No caso da história da
igreja, há uma tendência em exaltar as expressões heterodoxas da fé cristã,
considerando-as tão ou mais legítimas que o cristianismo majoritário,
“oficial”. Porém, o fato é que, se tais manifestações tivessem se tornado
dominantes, o evangelho conforme exposto no Novo Testamento teria sofrido
distorções incontornáveis. A título de ilustração, vale a pena lembrar alguns
desses fenômenos.
Nos primeiros séculos, numa época em
que imperava certa indefinição teológica, surgiram muitos movimentos
dissidentes no âmbito do cristianismo. Os casos mais conhecidos são os
gnósticos e os montanistas. O gnosticismo (do grego “gnosis” = conhecimento)
foi uma filosofia religiosa altamente especulativa que floresceu nos segundo e
terceiro séculos, reunindo elementos mitológicos, helenísticos e cristãos.
Baseava-se num dualismo radical entre espírito e matéria, elementos que teriam
sido criados por diferentes divindades. Afirmava possuir um conhecimento
secreto sobre a salvação, a ser transmitido somente aos iniciados. Sua total
rejeição do mundo material questionou convicções cristãs centrais como a
criação, a encarnação e a ressurreição.
Duas variantes do dualismo gnóstico
foram o docetismo e o marcionismo. Os docetistas (do grego “dokéo” = parecer)
se preocupavam antes de tudo em negar o caráter literal da encarnação do Verbo.
Para eles, o Filho de Deus, ao vir a este mundo, assumiu apenas uma “aparência”
de humanidade, não tendo um corpo material e físico como os seres humanos.
Pode-se ver uma crítica dessa posição em textos como 1 João 4.2-3 e 2 João 7.
Márcion, ou Marcião, que ensinou a sua doutrina na cidade de Roma em meados do
segundo século, postulava uma total disjunção entre a antiga e a nova dispensação,
rejeitando por completo o Antigo Testamento e a sua divindade, Iavé, tido por
ele como o criador da matéria e, assim, um ser distinto do Pai de Jesus Cristo.
Este último seria caracterizado pelo perdão, e não pela justiça, resultando na
salvação de todas as criaturas, sem exceção.
O montanismo foi um movimento de
natureza apocalíptica e carismática surgido na segunda metade do segundo
século, na Frígia, Ásia Menor, a atual Turquia. Seu líder, o profeta Montano,
alegava ser o instrumento do Paracleto, o Espírito Santo, visando preparar o
caminho para a iminente volta de Cristo e o milênio. Entendendo ser dirigida
diretamente pelo Espírito, a autodenominada “Nova Profecia” rejeitava a igreja
institucional e seus líderes, os bispos. Surpreendentemente, o montanismo
atraiu a simpatia de um famoso teólogo da antiguidade, Tertuliano de Cartago.
Esse grupo e os anteriores subsistiram por vários séculos.
Na Idade Média, multiplicou-se o
número de seitas dissidentes e exóticas que alegavam ter vínculos com a fé
cristã. A mais famosa foi a dos cátaros (do grego “katharós” = puro), que
floresceu no século 12 no Languedoc, sul da França. Eram também conhecidos como
“albigenses”, nome derivado de Albi, a principal cidade em que se concentravam.
Esse movimento, herdeiro dos paulicianos e bogomilos dos nono e décimo séculos,
abraçava um sincretismo cristão, gnóstico e maniqueísta marcado por um dualismo
radical e um extremo ascetismo, os quais tinham implicações bastante negativas
para a fé cristã histórica. Os cátaros foram suprimidos por uma cruzada
convocada pelo papa Inocêncio III em 1209. Ele e seu sucessor Gregório IX
criaram um tribunal especial, a Inquisição ou Santo Ofício (1233), para lidar
com esse e outros casos de heresia.
Ao longo do tempo, multiplicaram-se
os grupos cristãos dissidentes no Ocidente, mas um fenômeno particularmente
notável ocorreu nos Estados Unidos nos séculos 18 e 19. Num contexto marcado
por enorme fermentação intelectual, social e religiosa, surgiram não somente
seitas inusitadas, mas verdadeiras religiões novas que se consideravam
herdeiras legítimas do cristianismo. Entre as seitas estavam as chamadas
“comunidades utópicas”, como os “shakers” e a Comunidade de Oneida. A fundadora
dos “shakers” foi “mãe” Ann Lee Stanley (1736–1784), de New Lebanon (Nova
York), que acreditava ser Cristo em sua segunda vinda. Esse grupo tinha uma
visão fortemente negativa da sexualidade, acreditava na comunicação com os
mortos e praticava uma dança coletiva de onde veio o seu nome. Já a Comunidade
de Oneida, também no Estado de Nova York, idealizada por John Humphrey Noyes
(1811–1886), ficou notória pelo “casamento complexo”, a ideia de que os membros
deviam ter tudo em comum, inclusive as esposas.
Quanto às religiões novas, as mais
conhecidas são o mormonismo e a Ciência Cristã. A Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias foi fundada por Joseph Smith Jr. (1805–1844) e tem sua
sede mundial em Salt Lake City, no Estado de Utah. Adota o Livro de Mórmon e
outros escritos ao lado da Bíblia e defende ensinos como a corporeidade de
Deus, a divinização do ser humano e o batismo em prol de parentes falecidos. A
Ciência Cristã surgiu dos ensinos de Mary Baker Eddy (1821–1910), cujos
escritos são considerados inspirados. A igreja-mãe está localizada em Boston e
suas crenças incluem as seguintes: panteísmo (tudo é Deus), a matéria não
existe, o mal e o pecado são imaginários, existem provações depois da morte.
Enfim, é vasto o cardápio de
excentricidades com maior ou menor grau de afastamento do cristianismo
clássico, inclusive no Brasil, conhecido por sua exuberante religiosidade.
Na imensa maioria dos casos, tais movimentos resultam das ações de líderes
personalistas, dotados de forte carisma e mania de grandeza, que reinterpretam
a Escritura e a fé cristã de maneira particular e então conseguem reunir em
torno de si um grande número de seguidores. Mais do que seus fiéis, eles têm
responsabilidade diante de Deus pelos males que causam ao Corpo de Cristo.
Paradigmas da Reforma: três visões da Igreja
Dentro de poucos anos será comemorado
o 5º centenário da Reforma Protestante. Isso significa que até 2017 muito irá
se falar, escrever e debater sobre o significado e as implicações desse
importante movimento do século 16, do qual muitas igrejas evangélicas se
consideram herdeiras. Como se sabe, os diferentes reformadores abraçaram um
conjunto de convicções e princípios comuns. Embora fundamentais, esses
princípios não impediram que o movimento protestante se fracionasse em diversas
correntes. No século 16, esses grupos foram quatro -- luteranos, reformados,
anabatistas e anglicanos. Nos séculos seguintes, surgiram muitos outros, todos
os quais, de alguma forma, desenvolveram ênfases que já estavam presentes nos
quatro movimentos iniciais. Assim, os ramos pioneiros da Reforma representaram
não somente diferentes confissões religiosas, mas também diferentes maneiras de
entender a igreja e a vida cristã.
Tradição
Os reformadores se defrontaram com um
dilema: eles queriam romper com certos elementos dogmáticos e comportamentais
da igreja majoritária, mas ao mesmo tempo desejavam demonstrar um senso de
continuidade com a longa história cristã anterior a eles. Em outras palavras,
eles questionaram alguns aspectos do passado cristão, mas se esforçaram por
manter outros. Isso aconteceu em diferentes graus nos movimentos iniciais da
Reforma. Dois desses grupos foram especialmente escrupulosos no sentido de
preservar tudo o que fosse possível da tradição cristã anterior: luteranos e
anglicanos. Isso fica evidente em diversas áreas da vida da igreja, como o
entendimento do ministério e do culto cristão.
Apesar de sua crítica contundente do
catolicismo medieval, Lutero e seus seguidores preservaram o episcopado, um
entendimento semicatólico da Ceia do Senhor, um forte destaque ao calendário
eclesiástico e uma liturgia elaborada. Os anglicanos foram ainda mais enfáticos
nesse esforço, dando imenso valor à sucessão apostólica, a hierarquia e a um
culto aparatoso, fortemente marcado pelo ritual. Para um observador desavisado,
uma cerimônia anglicana se parece bastante com sua equivalente católico-romana.
Não obstante a influência inicial da tradição reformada ou calvinista, o
anglicanismo abraçou consciente e intencionalmente uma síntese
católico-protestante, apesar da presença de uma ala nitidamente evangélica
nessa igreja (“Low Church”). Luteranos e anglicanos também procuraram manter o
ideal da cristandade, ou seja, uma igreja única e hegemônica fortemente aliada
ao Estado.
Experiência
Outro grupo inicial da Reforma
Protestante tomou um rumo diametralmente oposto ao das igrejas retromencionadas
-- os anabatistas, também conhecidos como “irmãos suíços”. Para esse segmento,
o mais importante não eram os 1.500 anos de história e tradição anteriores, mas
as origens mesmas do cristianismo, isto é, o Novo Testamento. Seu grande ideal
foi voltar a viver como os cristãos da igreja primitiva. Com isso, seu
movimento se caracterizou pela rejeição da pesada herança dogmática, litúrgica
e institucional do catolicismo e do protestantismo magisterial. Para a
mentalidade anabatista, o mais importante era o elemento experimental da fé
cristã: o relacionamento com Deus, a necessidade de conversão, a separação do
mundo e o exercício da fé.
Esses traços deram grande vitalidade
espiritual aos “irmãos” e os capacitaram a enfrentar corajosamente as horríveis
perseguições de que foram objeto em diversas regiões da Europa. Ao mesmo tempo,
seu experiencialismo foi uma fonte de dificuldades que foram lamentadas pelos
reformadores principais. Entre estas podem ser mencionadas o apelo a revelações
diretas do Espírito Santo, o perigo de lideranças personalistas e o fanatismo
gerado por convicções milenaristas. Com o tempo, esse grupo adquiriu maior
sobriedade e equilíbrio, sob a direção de homens como o holandês Menno Simons,
o originador dos menonitas.
Escritura
Uma terceira abordagem entre os
grupos protestantes foi adotada pelos reformados ou calvinistas, que
privilegiaram uma posição mediana entre o tradicionalismo dos luteranos e anglicanos
e o experiencialismo dos anabatistas, ainda que abraçando certas preocupações
desses movimentos. Historicamente, os reformados têm sido conhecidos por sua
ênfase na Palavra de Deus, a revelação bíblica, como o fundamento primordial da
igreja e da fé cristã. Eles entendem que nem a tradição nem a experiência devem
ter a última palavra na vida e na espiritualidade cristã, mas devem estar
sempre submissas à revelação objetiva de Deus nas Escrituras.
Como foi dito, o movimento reformado
abraçou uma posição intermediária entre as outras duas alternativas, porém não
as rejeitou por completo. À semelhança das tradições luterana e anglicana, o
calvinismo tem um imenso respeito pela história cristã ao longo dos séculos,
por muita coisa que os cristãos fizeram e falaram de positivo nos 1.500 anos
anteriores à Reforma. São exemplos disso a sua apreciação pelos pais da igreja
e pelas grandes formulações dos credos históricos, bem como pela riqueza e
profundidade espiritual das liturgias antigas. De igual modo, a tradição
reformada sempre valorizou os aspectos existenciais e práticos da vida cristã,
como a vida devocional, a oração, a santificação e a obediência à lei de Deus.
Tudo isso, no entanto, fica sempre subordinado à Palavra, que deve ter
prioridade em tudo o que diz respeito à fé, ao culto e à vida.
Conclusão
Todas as igrejas protestantes que
surgiram a partir do século 17 são herdeiras desses paradigmas do século 16,
mesclando-os em diferentes proporções. No mundo contemporâneo, temos confissões
que se destacam por sua reverência pelo passado, seu senso de continuidade
histórica, sua valorização de formas institucionais e litúrgicas consagradas
pela tradição. Outros grupos se caracterizam primariamente por sua
espontaneidade, informalidade e intensidade espiritual, a partir de uma
experiência direta do divino. Finalmente, há aqueles que, sem desprezar a
tradição e a experiência, entendem que sua identidade deve ser moldada acima de
tudo pelo compromisso com o que Deus revelou em sua Palavra -- o “sola Scriptura”
dos reformadores do século 16. Que as igrejas filhas da Reforma reafirmem esse
compromisso solene, para que possam ser fiéis ao evangelho de Cristo nos
momentosos dias atuais.
FONTE REV.ULTIMATO
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