Rolando de
Nassau: Toda música sacra é religiosa, mas nem toda música religiosa é sacra
O carioca
de 82 anos Roberto Torres Hollanda, mais conhecido pelo pseudônimo Rolando de
Nassau, é crítico musical d’“O Jornal Batista” desde dezembro de 1951, quando
tinha acabado de completar seu 22° aniversário. Formado em direito e
administração, casado, duas filhas, Hollanda tem três livros publicados:
“Introdução à Música Sacra” (1957), “Nassau -- dicionário de música evangélica”
(1994) e “Bach -- vida e obra sacra”, além da tradução de “La Prière d'après
les Catéchismes de la Reformation”, de Karl Barth. É crente em Jesus há 70 anos,
desde a adolescência, quando ouviu um sermão pregado por uma mulher. Ele
entende que um dos pontos negativos da atual produção hinódica é “a
insuficiência de hinos que levem o pecador ao arrependimento, à confissão e
santificação”.
Que nome o senhor daria aos cânticos que mais se
cantam hoje, antigamente chamados de “corinhos”?
Usamos
a expressão “música cristã popular” para designar os cânticos não estabelecidos
pelas normas litúrgicas ou práticas de culto das igrejas (católicas, ortodoxas,
protestantes, evangélicas, pentecostais e neopentecostais) e de suas
comunidades locais. Por não serem litúrgicos, são livremente entoados nos
lares, nos templos e nos logradouros públicos e difundidos pelo rádio,
televisão e internet. Pertencem à música de entretenimento. Nos primórdios do
meu ofício de crítico musical, suscitei uma reação à má qualidade dos corinhos.
Foi uma das minhas poucas iniciativas que surtiram um efeito duradouro. Na
década de 50, os corinhos apresentavam erros gramaticais, textos com argumentação
raquítica e melodias com apelo popularesco. Eram bisonhas imitações dos
cânticos da comunidade católica de Taizé (França). No decorrer de quatro
décadas, foram aprimorados. Inicialmente importados, exigiam traduções, nem
sempre fiéis às letras originais. Esses cânticos procederam, na década de 70,
do movimento “Praise and Worship” (Louvor e Adoração). Não somente a música,
mas também o culto deveria ser “contemporâneo”. Na década de 90, surgiram nas
igrejas as “equipes de louvor”. Esse movimento carismático evangélico,
inspirado por uma teologia pentecostal, era fortemente apoiado por gravadoras,
editoras, emissoras de rádio e televisão, e eficientemente divulgado pela
Hillsong e pela Vineyard. Esse tipo de “música cristã popular” reflete o individualismo
do cultuante, mesmo quando ele se encontra em um contexto social (a igreja), e
cria uma atmosfera de euforia, ainda que ele seja um pecador precisando de
confissão, arrependimento e santificação.
A diferença entre a música sacra tradicional e a música
cristã contemporânea é apenas uma questão de ritmo?
“Música
cristã contemporânea” é o termo apropriadamente aplicado à música que surgiu,
na década de 60 do século passado, nas igrejas protestantes e evangélicas dos
Estados Unidos e da Inglaterra, por influência da Igreja Anglicana e da Igreja
Romana, quando aceitaram em seus cultos ritmos, estilos e instrumentos da
música profana popular. Além do ritmo, ela difere muito da música sacra. Esse
estilo musical teve o apoio de um movimento reavivalista (“Jesus Movement”), em
contrapartida ao movimento esquerdista (“Peace Movement”), pois os jovens da
época acharam que as práticas tradicionais de culto e de evangelização estavam
desatualizadas. Os que eram músicos procuraram desenvolver novas técnicas de composição
e execução musical, para sensibilizar a massa de jovens atraída pelas campanhas
evangelísticas. O novo estilo de música cristã “contemporâneo”, diferente do
“tradicional”, incorporou formas da música popular norte-americana. Na década
de 70, algumas igrejas de cunho pentecostal adotaram um estilo folclórico,
divulgado pela gravadora Maranatha. Tudo isso aconteceu porque os dirigentes
musicais da época não exerceram sua função educativa; não ensinaram a juventude
a discernir entre música religiosa e música profana. Outro fator foi a
conversão de músicos profanos que, rápida e naturalmente, levaram seus ritmos,
estilos e instrumentos musicais para o novo ambiente social (as igrejas), onde
foram recebidos como atuais e bons. Ao mesmo tempo, os jovens das igrejas
evangélicas estavam sendo fortemente influenciados pela música popular. Não
estarei exagerando ao acreditar que muitos deles participaram do recente Rock
in Rio.
O que é música gospel?
A
partir do termo “gospel” distinguimos três tipos: o de culto, o de concerto e o
de espetáculo.
Na
década de 90, algumas igrejas, especialmente as de negros, praticavam nos
Estados Unidos o “gospel” que consideravam adequado para ser executado durante
o culto divino. O de concerto era apresentado por grupos vocais profissionais
em um estilo sofisticado. O de espetáculo ainda hoje integra o repertório de
grupos profissionais que cantam letras religiosas envolvidas pelo “jazz”. As
igrejas no Brasil, a rigor, não adotam qualquer desses três tipos; cantam como novidade
ou por excentricidade; portanto, não há como falar em “gospel”. Experimentado
por compositores e cantores evangélicos no Brasil, é modismo artificial, um
tanto ultrapassado. Durante 300 anos (1660-1990) desenvolveu-se a salmodia e a
hinódia nas igrejas protestantes e evangélicas. Desde 1960 tem havido a
substituição dessas formas tradicionais de canto congregacional pela cantoria.
O que temos é, simplesmente, “música evangélica”. Esta tem sido deturpada, na
origem e no destino, por compositores e cantores.
O senhor considera a nomenclatura “sacra” em
“música sacra” uma mera referência ao gênero musical ou também uma referência
teológica?
Toda
música sacra é religiosa, mas nem toda música religiosa é sacra. Música sacra,
ou litúrgica, é a música consagrada a Deus, de acordo com a liturgia
determinada pela autoridade eclesiástica. Dos séculos 4 a 6, havia
controvérsias entre os teólogos sobre a música durante o culto. Na Idade Média,
Tomás de Aquino manifestou um certo embaraço para defender o canto litúrgico.
No século 16, a Igreja Católica Romana, por intermédio do Concílio de Trento,
proibiu toda espécie de música. Entrementes, as igrejas protestantes e
evangélicas prestigiavam a execução musical. A Igreja Ortodoxa proibia a música
instrumental; a música de culto se restringia ao canto coral. Cremos que, em
qualquer igreja ou comunidade cristã local, a boa música deve ser regulada pela
boa teologia para produzir boa doxologia. As liturgias cristãs tomaram formas
diversas, que variam segundo um critério geográfico e histórico e também de
acordo com cada igreja. As igrejas que adotam liturgias são compostas por
comunidades antioquenas, maronitas, bizantinas, armênias, nestorianas,
caldaicas, malabares, coptas e etíopes (no Oriente); de ritos romano, ambrosiano,
moçarabe e gálico (na Igreja Católica Ocidental); de vários ritos (na Igreja
Ortodoxa). No Brasil, adotam liturgia a Igreja Anglicana, as Igrejas Luteranas,
a Igreja Presbiteriana, a Igreja Presbiteriana Independente e a Igreja
Metodista. Pelo que sabemos, as igrejas batistas e congregacionalistas não
adotam. Atualmente, parece que a música nas igrejas atingiu o seu paroxismo.
Na sua opinião, é necessário valorizar a hinologia
tradicional para a nova geração? Como fazer isso?
As
igrejas e suas comunidades locais devem prestigiar a sua música tradicional. No
caso das igrejas evangélicas, cabe aos ministros e diretores musicais a função
educativa. Não basta cuidar da execução musical. Eles devem transmitir noções a
respeito da história da salmodia e da hinódia de suas respectivas igrejas. O
espaço aqui é exíguo para discorrer sobre o assunto.
Como o senhor avalia os cânticos com melodias e
ritmos brasileiros?
Sou
favorável à atualização das melodias da música evangélica, ao aproveitamento
criterioso das constâncias melódicas, rítmicas e harmônicas da música
brasileira. Na década de 70, publiquei aqui o artigo “Por um hinário
brasileiro”.
A música sacra erudita dos nossos dias também sofre
do esvaziamento de conteúdo bíblico e teológico como a “música ‘gospel’” atual
de maneira geral?
A
música sacra erudita da atualidade, em geral, tem honrado os padrões estéticos
e teológicos dos séculos passados. Podemos citar os compositores John Rutter
(anglicano, inglês) e Amaral Vieira (católico, brasileiro), que estão
remediando os estragos causados na década de 60 por alguns outros músicos em
suas respectivas igrejas. Em termos práticos, na música do século 20 ocorreu o
favorecimento da mídia para o predomínio do profano e a ostensiva negação do
sagrado. Alguns músicos evangélicos chegaram a dizer: “Não existe música
sacra”.
Qual o papel da música cristã na vida da igreja
(corpo de Cristo)?
A
música deve contribuir para a pureza das igrejas e de seus membros (Fp 4. 8).
Tanto quanto possível, a música de culto deve ser sacra. Essa música específica
é caracteristicamente funcional; é elaborada e executada para exercer certas
funções na vida da igreja; não é ornamental e alternativa, como é o caso da
música de entretenimento. O pior é que às vezes a comunidade local não
estabelece qualquer norma a ser observada por regentes, cantores e
instrumentistas. Lamentavelmente, peças musicais que não obedecem às normas são
executadas como se fossem sacras. Os organizadores de certos hinários cometeram
o equívoco de neles incluir o movimento coral da “Sinfonia número 9”, de
Beethoven; trata-se de poema panteísta, sem vínculo com a nossa fé religiosa, e
que tem servido de manifestação de posições ideológicas contrárias às nossas.
Peças desse tipo não são “música de igreja”, muito menos música de culto. Os
principais pontos positivos da atual produção hinódica são: 1) renovação dos
temas dos hinos, para incluir a preocupação contemporânea com a
responsabilidade social da igreja, a segurança das famílias e a fidelidade dos
cristãos na manutenção financeira das igrejas; 2) atualização das melodias. Os
pontos negativos são: 1) a ênfase no louvor sem o consequente comprometimento
do cultuante na obediência aos mandamentos divinos e aos ensinos cristãos; 2) a
insuficiência de hinos que levem o pecador ao arrependimento, confissão e
santificação.
Johann Sebastian Bach e George Frideric Handel
nasceram no mesmo país (Alemanha) e no mesmo ano (1685). Qual o senhor aprecia
mais: o “Jesus, alegria dos homens”, de Bach, ou o “Aleluia”, de Handel?
Aprecio
igualmente “Jesus, alegria dos homens” e “Aleluia”, alguns trechos extraídos de
uma cantata de Bach e de um oratório de Handel, respectivamente. No conjunto da
obra dedicada à música sacra minha preferência é por Bach. Handel compôs mais música
profana. Creio que as cantatas de Bach deveriam ser mais aproveitadas nos
concertos corais das igrejas.
FONTE REV.ULTIMATO
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