terça-feira, 31 de março de 2015

CONTROVERCIAS CRISTOLÓGICAS

      
     Fé e dogma: as controvérsias cristológicas da igreja


A palavra “teologia” desperta reações contraditórias nas pessoas. Para alguns, trata-se de uma atividade legítima e indispensável para a igreja e para os cristãos. Para outros, é algo artificial e condenável, uma produção humana que distorce a revelação de Deus. Tudo de que o crente necessita, dizem eles, é a Palavra de Deus, sem as especulações e os devaneios dos teólogos. Todavia, o fato é que, mesmo sem o saber, todo cristão faz teologia. Essa teologia pode ser boa ou ruim, equilibrada ou tendenciosa, mas todos a fazem. Quando o humilde pregador pentecostal abre a sua Bíblia e começa a interpretá-la, explicá-la e aplicá-la aos seus ouvintes, está fazendo teologia, por mais que deteste essa palavra.

A teologia não é nada mais, nada menos que a reflexão acerca das Escrituras e da fé cristã. Uma definição acadêmica diz que ela é “a exposição raciocinada da fé”. Como tal, é uma tarefa inevitável da igreja. Uma das razões para isso é a própria riqueza e complexidade das Escrituras e a possibilidade de diferentes entendimentos de muitos de seus textos. A Igreja Antiga, ainda nos seus primeiros tempos, defrontou-se com esse desafio. Diante das dissidências internas, ou seja, indivíduos e grupos que faziam interpretações divergentes da mensagem cristã, e dos desafios externos, representados pelos críticos pagãos, os cristãos sentiram a necessidade premente de explicitar e articular de maneira clara e convincente as suas convicções, à luz das Escrituras.

Obviamente, a questão mais central da fé cristã é aquela que diz respeito ao próprio Cristo. Desde cedo, os cristãos puseram-se a refletir intensamente sobre a pessoa e a identidade do Salvador, motivados, inclusive, por considerações apologéticas e missionárias. Era crucial que eles tivessem bastante clareza sobre aquele que havia se tornado o principal ponto de referência de suas vidas. Partindo dos dados bíblicos, especialmente a descrição joanina de Cristo como o Logos ou Verbo (Jo 1.1, 14; 1 Jo 1.1; Ap 19.13), houve o florescimento de uma grande diversidade de concepções, muitas das quais foram consideradas pela igreja como insatisfatórias ou simplesmente errôneas.

Entre essas concepções estavam as que foram englobadas pelo termo “monarquianismo”, um grande esforço feito nos séculos 2º e 3º para preservar, nas discussões sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, uma importante herança recebida pela igreja do judaísmo — o monoteísmo, a afirmação radical da existência de um só Deus. Parecia a muitos cristãos do período que afirmar a divindade do Pai, do Filho e do Espírito era defender o triteísmo, isto é, a existência de três deuses. As diferentes correntes monarquianistas foram classificadas pelos estudiosos em dois grandes grupos.
 

O “monarquianismo dinâmico” ou adocionismo negava pura e simplesmente a divindade de Cristo, declarando que Jesus era um simples homem que foi adotado por Deus como filho por ocasião do seu batismo (Mt 3.16, 17), sendo revestido pelo poder do Espírito Santo (em grego, “poder” = dynamis, daí dinâmico). Já o “monarquianismo modalista” entendia que Pai, Filho e Espírito Santo eram três “modos” ou manifestações sucessivas do único Deus. Isto é, Deus revelou-se inicialmente como Pai, depois como Filho e finalmente como Espírito Santo. Uma variação dessa corrente, o “patripassianismo”, dizia que o próprio Pai morreu na cruz.

O monarquianismo procurava salvaguardar a unidade de Deus pela negação seja da divindade, seja da personalidade distinta do Filho e do Espírito Santo. Foi rejeitado pela Igreja Antiga devido à convicção de que suas posições não faziam justiça ao testemunho das Escrituras.

A realidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo era fundamental para a identidade dos primeiros cristãos desde o dia em que abraçavam a nova fé. No próprio momento do seu batismo, de sua iniciação na vida cristã, essa tríplice realidade era invocada e confessada pelo oficiante e pelo batizando. Vários escritores cristãos dos primeiros séculos fizeram reflexões extremamente penetrantes acerca desse tema, como foi o caso de Irineu de Lião e Tertuliano de Cartago. Mas foi somente nos séculos 4º e 5º que as discussões teológicas a respeito da “tríade divina” produziram seus frutos mais ricos e duradouros.
 

O início do século 4º marcou um dos momentos mais decisivos da história do cristianismo. A conversão do imperador Constantino e o seu Edito de Milão (ano 313) puseram fim a uma longa história de perseguições e deram início a uma história ainda mais longa de ligações entre a Igreja e o Estado. Poucos anos após a ascensão de Constantino, um presbítero de Alexandria, no Egito, chamado Ário, começou a divulgar as suas idéias a respeito de Cristo. Segundo ele, Cristo era muito superior aos seres humanos, mas inferior ao Pai, tendo sido criado por Ele antes da existência do mundo. A acirrada controvérsia que se seguiu foi interpretada pelo imperador como um perigo tanto para a unidade da igreja quanto para a integridade do império. A fim de resolver o problema, ele convocou os bispos para uma reunião na cidade de Nicéia, perto da capital imperial, Constantinopla, no ano 325.

O Concílio de Nicéia, o primeiro dos chamados concílios ecumênicos da Igreja Antiga, reuniu mais de 300 bispos, quase todos da parte oriental ou grega do Império Romano, e representou uma mistura preocupante de agendas políticas e teológicas. Depois de intensos debates, aos quais não faltaram as interferências do monarca, o “arianismo” foi condenado como herético, sendo declarada vitoriosa a posição que defendia a personalidade distinta e a plena divindade de Cristo. O concílio produziu um famoso Credo cujo ponto culminante foi a declaração de que o Filho era homoousios ou “consubstancial” com o Pai. Todavia, por muitos anos houve fortes resistências contra a “doutrina da trindade” articulada pelos bispos reunidos em Nicéia.

Foi somente através dos esforços de alguns hábeis teólogos que essa doutrina finalmente veio a encontrar ampla aceitação na região oriental do Império Romano. Quatro deles destacaram-se em especial: Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo, sendo estes últimos conhecidos como “os três capadócios”. Em sua argumentação, eles apelaram tanto às Escrituras como à experiência da igreja. Somente um Cristo que fosse ao mesmo tempo divino e humano poderia ser o verdadeiro e eficaz mediador entre Deus e os homens. Por outro lado, os cristãos desde o princípio aprenderam a exaltar a Cristo, adorá-lo no culto e dirigir orações a Ele. Somente um ser divino merecia ser tratado desse modo.

O triunfo da ortodoxia de Nicéia foi sacramentado no Concílio de Constantinopla (ano 381), novamente no contexto de um importante evento político-religioso — a oficialização do cristianismo católico como a religião do império, no ano 380, pelo imperador Teodósio I. Os bispos reunidos na capital imperial reafirmaram as declarações de Nicéia, esclarecendo melhor alguns pontos obscuros e fazendo uma afirmação explícita da personalidade e divindade do Espírito Santo. O novo credo assim produzido ficou conhecido como Credo “Niceno” ou Niceno-Constantinopolitano.

Finalmente, na primeira metade do século 5º uma nova controvérsia abalou a cristandade, dessa vez a respeito da relação entre as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana. Duas posições básicas se manifestaram desde o início, representadas essencialmente pelas célebres escolas de interpretação bíblica de Alexandria e Antioquia. Os alexandrinos entendiam que o Verbo uniu-se à carne, sendo o Cristo encarnado uma pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a divindade de Cristo, em detrimento da sua humanidade. Desse raciocínio resultaram duas posições que foram eventualmente rejeitadas: o “apolinarismo”, segundo o qual Jesus era uma combinação de alma racional divina (o Verbo) e corpo humano, e o “monofisismo”, que afirmava que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina.

Já os antioquianos entendiam que Cristo tinha tanto uma plena natureza divina quanto uma plena natureza humana. Seu problema estava na tendência de dividir em duas a pessoa de Cristo. O grande defensor dessa posição foi Nestório, o patriarca de Constantinopla. Ele afirmava com tanta ênfase a distinção das naturezas que parecia ensinar que havia duas pessoas em Cristo, uma divina e outra humana. Essas questões foram tratadas em outros dois concílios ecumênicos. O Concílio de Éfeso (ano 431) condenou o “nestorianismo” e o Concílio de Calcedônia (451) condenou também o apolinarismo e o monofisismo. Este último concílio formulou as suas conclusões na célebre Definição de Calcedônia: “Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e corpo; consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade... Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação...”

Desde então, esse entendimento da pessoa de Cristo foi amplamente aceito pelos católicos, pelos ortodoxos gregos e mais tarde pela maior parte dos protestantes. É parte daquilo que se denomina a fé cristã histórica. Todavia, desde aquela época até os nossos dias tem havido críticas contra essas formulações doutrinárias da Igreja Antiga, alegando-se desde o uso de terminologia não-bíblica e influências do pensamento grego até as interferências políticas na vida da igreja.
 


O fato é que, mesmo reconhecendo-se esses problemas e a consideração adicional de que as declarações doutrinárias não são infalíveis, as doutrinas ou dogmas cristológicos da Igreja Antiga são aceitos pela maioria dos cristãos como uma expressão autêntica da fé bíblica, refletindo de maneira fiel as convicções básicas de incontáveis gerações de seguidores de Cristo. Por limitadas que sejam essas formulações, pois que vazadas em linguagem e categorias de pensamento humanas e condicionadas, elas continuam insuperadas na beleza dos seus termos, na profundidade e equilíbrio das suas declarações e no esforço de fazer justiça à totalidade do ensino das Escrituras a respeito de Cristo, sua pessoa e sua obra. Elas reafirmam, em linguagem teológica, a grandiosa mensagem de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14).


FONTE REV.ULTIMATO



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