Em defesa da teologia
Em meados do segundo
século, um cristão procedente do Ponto, na Ásia Menor, chegou a Roma com uma
mensagem atraente. Márcion, que era filho de um bispo, acreditava na
radicalidade do amor de Deus. Para ele, a bondade era o atributo supremo da
divindade, que se mostrava sempre, em todas as circunstâncias, um Deus
generoso, misericordioso e perdoador. Como alguém poderia discordar de
conceitos tão nobres e belos? Pois bem, pouco tempo depois, ao compreender as
implicações mais amplas desse ensino, a igreja romana expulsou Márcion e o
considerou um herege.
Para ele, o amor divino era tão exclusivo que eliminava a noção de justiça.
Deus perdoa a todos, até mesmo os pecadores impenitentes, porque não pode agir
de outra forma. Assim, não há condenação de qualquer espécie, e todos irão se
salvar. O Deus verdadeiro, dizia ele, é o amoroso pai de Jesus Cristo, e não a
divindade justiceira e vingativa do Antigo Testamento, o criador do mundo
material. A doutrina de Márcion se mostrou tão cativante que ele atraiu um grande
número de seguidores. Chegou a surgir uma igreja marcionita, que subsistiu por
vários séculos.
Nem tudo que reluz
O caso de Márcion ilustra o fato de que não basta uma doutrina ou teologia ser
atraente e popular. Não é suficiente que ela seja “lógica” e satisfaça as
expectativas e preferências das pessoas. É preciso que ela seja verdadeira,
coerente com a revelação dada por Deus nas Escrituras. Apesar de todo o seu
aparente encanto, a teologia de Márcion se revelou falsa, uma perversão da
mensagem bíblica. Esse fenômeno tem se repetido inúmeras vezes ao longo da
história e continua a ocorrer nos dias atuais. Os ensinos são outros, os
personagens são diferentes, mas o mecanismo é o mesmo.
Qual a origem dessas distorções? Em primeiro lugar, a tendência humana para o
subjetivismo. A teologia é, por sua própria natureza, um empreendimento humano.
Sua tarefa é refletir sobre os dados da revelação em busca de uma compreensão
mais clara de Deus, do ser humano, da salvação e de todos os grandes temas da
Escritura. No entanto, ela corre o risco de se tornar um esforço excessivamente
personalista, gerando desvios antigos e novos bem conhecidos. Os reformadores
do século 16 estavam conscientes desse perigo, ao insistirem que a teologia se
apoiasse explicitamente na Palavra de Deus, corretamente lida e interpretada.
Para tanto, elaboraram métodos saudáveis e equilibrados de exegese bíblica.
Respeito pela história
Mesmo que uma teologia seja bíblica, podem existir problemas. A Bíblia já foi
utilizada, por exemplo, para defender a poligamia e a escravidão. A
hermenêutica da Escritura pode ser excessivamente condicionada por estreitos
pressupostos ideológicos. Daí a preocupação dos reformadores em valorizar a
experiência teológica e exegética da igreja, acumulada ao longo das gerações.
Ao mesmo tempo em que rejeitaram os dogmas para os quais não encontravam
suporte na Palavra de Deus, Lutero, Calvino e seus colegas não hesitaram em
acolher e utilizar tudo aquilo que viam de positivo no passado cristão.
O que tem acontecido com frequência no decorrer dos séculos, e também em nossos
dias, é que muitos pensadores desprezam solenemente as contribuições do passado
e a maneira como os cristãos têm entendido seu legado espiritual -- a chamada
“fé cristã histórica”. Um bom exemplo é a própria doutrina de Deus, que tem
experimentado as mais diferentes reinterpretações nos últimos tempos. Sob o
pretexto de que a própria Bíblia ou a reflexão da igreja antiga foi contaminada
pelo pensamento filosófico grego, são feitas reavaliações radicais acerca do
ser divino. Um exemplo recente é o chamado teísmo aberto, que se afasta da
compreensão cristã tradicional de Deus -- e do testemunho claro das Escrituras
-- ao questionar as ideias da soberania e da providência divinas, e ao dar à liberdade
humana uma dimensão e uma autonomia que o pensamento cristão majoritário jamais
reconheceu.
Cuidado com as motivações
O marcionismo tinha motivações muito nobres: ressaltar a grandeza do amor de
Deus e sensibilizar o mundo pagão com a mensagem cristã. O mesmo se pode dizer
de outra heterodoxia cristã da antiguidade -- o pelagianismo. Pelágio queria
que os cristãos vivessem vidas consagradas e santificadas. Quem poderia ser
contra isso? No entanto, logo ficou evidente o fosso que havia entre suas ideias
e o testemunho da Escritura. Para ele, o ser humano é moralmente neutro, tendo
a plena capacidade, sem qualquer auxílio especial de Deus, de viver uma vida
virtuosa, isenta de pecado. Muito bonito, muito empolgante, mas muito errôneo,
como bem demonstrou o ilustre bispo Agostinho de Hipona.
Hoje, as motivações de muitas teologias vão do nobre ao questionável. No caso
da nefasta teologia da prosperidade, o que ocorre é simplesmente uma sujeição
da Escritura aos valores materialistas e hedonistas da sociedade de consumo. Já
o teísmo aberto e os outros movimentos de inspiração semelhante são motivados
pela necessidade legítima de lidar com uma realidade aflitiva -- o mal e o
sofrimento no mundo de um Deus bom. O problema está, utilizando um chavão bem
conhecido, em “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Em outras
palavras, no esforço de explicar ao homem moderno uma questão espinhosa, são
desprezados valores importantes da herança cristã. Procura-se alcançar um
objetivo importante mediante o sacrifício da verdade bíblica.
Conclusão
A teologia é uma tarefa imprescindível e absolutamente essencial para o povo de
Deus. Como a Escritura não apresenta formulações precisas e sistemáticas, coube
à igreja se debruçar sobre os dados da revelação e organizar de forma coerente
e harmônica suas verdades centrais. Sem a boa teologia, calcada numa exegese
criteriosa do texto sagrado, os cristãos ficam à deriva em um mar de opiniões
conflitantes a respeito de tudo. A fim de que seja benéfica para a igreja e
para o testemunho cristão, a reflexão teológica tem de observar certos
parâmetros, a começar de uma profunda reverência por Deus e sua Palavra. Além
disso, ela não deve ser um exercício individualista, mas um esforço conjunto de
cristãos que dialogam ao mesmo tempo com seus contemporâneos e com a “nuvem de
testemunhas” do passado. Finalmente, o objetivo primário da teologia não é
satisfazer os anseios ou dirimir as angústias do homem contemporâneo, mas ser
fiel àquele que, em sua Palavra e em seu Filho, vem a nós em julgamento e
graça.
As Escrituras, a tradição e a teologia
“Quem não conhece sua própria história não sabe por que é como é, e portanto não tem a liberdade de ser de outro modo. Quem, por outro lado, começa a compreender por que é de certo modo, começa também a descobrir a possibilidade de ser diferente” -- afirma Justo Gonzáles em sua obra “Retorno a la Historia del Pensamiento Cristiano -- tres tipos de teologia”, lançada originalmente em inglês e publicada em espanhol (Ediciones Kairos, 2009) com adaptação feita para o contexto da América Latina.
Afirmando a importância da busca das origens, Gonzáles adverte, entretanto, que não é a palavra dos teólogos que dura para sempre, mas a Palavra que os teólogos estudaram. Por mais que respeitemos nossos antepassados, considerar seus escritos como teologia definitiva equivale a trair exatamente seu mais precioso legado e um dos pontos essenciais da Reforma: a primazia das Escrituras sobre a tradição. Devemos ouvir a tradição, mas também envidar todos os esforços para que as Escrituras ganhem voz contemporânea. Cada geração deve buscar nas Escrituras a voz de Deus para hoje.
Desafiado nessas duas direções -- conhecer a tradição e atualizar as Escrituras --, Gonzáles faz o resgate histórico do que chama de “três tipos de teologia” presentes na igreja ao fim do século segundo e início do século terceiro da era cristã. Para efeitos didáticos e buscando aspectos gerais que determinavam suas ênfases fundamentais, Gonzáles escolhe três protagonistas para identificar as três teologias: Tertuliano, Orígenes e Irineu.
A obra de Gonzáles analisa como as diferentes tradições compreendiam “Deus, a criação e o pecado original”, “o caminho e a meta da salvação”, e como faziam uso das Escrituras, isto é, seus pressupostos hermenêuticos. A respeito da salvação, por exemplo, Tertuliano (160--220) acreditava que o problema do ser humano consistia na quebra da Lei de Deus, e portanto havia adquirido uma dívida legal, e nesse caso a salvação implicaria a satisfação da justiça de Deus.
Orígenes (185--253), por sua vez, compreendia que o problema humano não era a dívida contraída pela quebra da lei, mas sua incapacidade de contemplar a Deus, isto é, sua ignorância. A salvação, nesse caso, não seria resultado de alguém que pagasse a dívida humana, mas o favor de alguém que lhe trouxesse iluminação para que o mundo da matéria, resultado do pecado, fosse deixado para trás e todos os seres voltassem ao estado original, puramente intelectual, quando poderiam regressar à contemplação de Deus na dimensão absolutamente espiritual, cumprindo assim o propósito para o qual haviam sido criados.
Particularmente, mais me impressiona a compreensão de Irineu (130--202), para quem o problema humano é que estamos sujeitos ao mal e ao Maligno, e necessitamos, portanto, de libertação. Irineu descreve a obra de Jesus Cristo como vitória sobre todos os poderes que oprimem os seres humanos e a criação de Deus. Gonzáles faz um resumo dizendo que Jesus, por sua paixão e ressurreição, “levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens”, destruiu a morte, pôs fim à corruptibilidade e manifestou a vida.Como descendente de Adão, e justamente por isso, Jesus, em sua carne, triunfou sobre todos os poderes do mal e despojou o Maligno, tomou para si as chaves da morte e do inferno, obtendo para sempre a vitória por meio de sua ressurreição. Por meio de sua encarnação, vida, morte e ressurreição, Jesus veio a ser o novo Adão, cabeça de uma nova humanidade -- “quem está em Cristo é nova criação”. Em Adão, a velha criação se tornou sujeita a Satanás e, em consequência, cativa do pecado e da morte. Em Jesus Cristo, o novo Adão, a nova criação se torna vencedora sobre todos os poderes do mal e recebe a promessa da ressurreição. A consumação da salvação implica não apenas a restauração de toda a criação, que finalmente estará livre da corrupção, como também a perfeita comunhão entre Deus e os seres humanos, isto é, o privilégio de nos tornarmos “participantes da natureza divina”. Por isso, Irineu compreendeu a “adoção como filhos de Deus” como a possibilidade de “nos tornarmos, pela graça, aquilo que Deus é por natureza”: “Deus se fez Homem, para que os homens possam ser feitos deuses”; ou então: “Deus-Filho se fez aquilo que somos, para que viéssemos a ser aquilo que ele é”.
Toda vez que você ouvir alguém afirmando a superioridade de seu conjunto de crenças, pergunte a respeito das raízes de sua teologia, seus principais protagonistas e a evolução histórica de seu pensamento. Esses três exemplos apontam para o fato de que a verdade teológica e a heresia são questões de pontos de vistas, e que a história do pensamento cristão é uma referência imprescindível para quem deseja caminhar à luz das Escrituras Sagradas.
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