Jesus ou Yehoshuah?
Em meu trabalho de pesquisa e pastoral, tenho me defrontado com uma versão
hebraizante do cristianismo: pessoas que defendem ser errado usar o nome
“Jesus”. Para elas o certo seria sua forma hebraica Yehoshuah. Há quem pense que incorrem em erro as seguintes
tradições: ortodoxa, calvinista, luterana, anglicana, presbiteriana, batista,
metodista, adventista, quadrangular, assembleiana e outras pentecostais (de
igrejas como Deus é Amor, O Brasil para Cristo, Congregação Cristã do Brasil e
IURD). Todos estariam servindo a um falso deus.
A argumentação de quem pensa desta maneira pode ser assim resumida: a revelação
de Deus à humanidade foi dada na língua hebraica. A única transliteração
possível do nome do Messias é Yehoshuah, e não Jesus, que seria uma deturpação
greco-romana, pois na língua hebraica não há correspondente para a letra “j”.
Portanto, o nome do Senhor, para o grupo citado, não poderia em hipótese
nenhuma ser transliterado com a letra “j”. O fato de a língua hebraica não
possuir letra correspondente a “j” não é nada demais. Há tempos, especialistas
em hebraico são unânimes em transliterar palavras que começam com a letra
hebraica yod (a letra inicial de Yehoshuah), ora com “i” (ou
“y”), no caso de substantivos comuns, ora com “j”, no caso de nomes próprios.
Uma rápida consulta a qualquer léxico, analítico ou gramática de hebraico
bíblico confirma esta afirmação.
O movimento pretende restaurar o que considera ser uma verdade adormecida por
2.000 anos. Não leva em consideração o fato atestado pelo Dr. Karl Heinrich
Rengstorf, de que séculos antes de Cristo o nome “Jesus” já era muito popular
entre os judeus. Há extensa documentação que comprova a afirmação do professor
Rengstorf(1). É, portanto, impossível que o nome “Jesus” fosse o nome de um
falso deus, como acredita o movimento que quer hebraizar o cristianismo. Se
assim fosse, judeus jamais colocariam este nome em seus filhos.
O que se pode dizer com relação a este ensino? Antes de iniciar qualquer
argumentação, uma ressalva: para se comentar este assunto em detalhes, é
preciso muito espaço. Portanto, o que se segue é uma síntese.
Do óbvio ululante à
descoberta da América
Nelson Rodrigues, conhecido teatrólogo brasileiro, criou a expressão “óbvio
ululante”. Parte da argumentação do grupo que defende o uso de Yehoshuah Hamashiah (em bom português, Jesus Cristo) insere-se nesta
categoria. Seus textos repetem à exaustão que o nome do Salvador foi revelado
em sua forma hebraica Yehoshuah. Isso é verdade. Tal declaração é um axioma, uma
verdade evidente por si mesma, que não necessita de comprovação. Em sua
soberania, Deus escolheu o antigo povo de Israel para ser o depositário da
revelação (Dt 7.6-7; Rm 9.4-5). É óbvio que Ele comunicou-se com o povo que
escolheu na língua hebraica. No entanto, não há nas Escrituras ordem para que a
língua hebraica seja mantida nem proibição à tradução e, ou, transliteração de
nomes em hebraico para qualquer outra língua. A língua hebraica não é sagrada.
No Egito, em meados do quarto século antes da era cristã, aconteceu a tradução
da Bíblia hebraica para a língua grega. Essa tradução é a famosa Septuaginta (LXX). As comunidades judaicas que não residiam em
Israel e não tinham o hebraico como língua materna sempre entenderam a Septuaginta como Palavra de Deus, mesmo sabendo ser uma tradução,
na qual os nomes próprios hebraicos foram transliterados.
Passados tantos séculos, um grupo “descobre a América” e passa a acreditar na
forma Yehoshuah como sendo a única correta, bem como a ensiná-la. É
estranha essa tentativa de “reinvenção da roda”, por alguns motivos.
Primeiro, a insistência na forma Yehoshuah é exemplo do que especialistas em sociologia chamam
deseqüestro simbólico. Há um seqüestro de um elemento da cultura
judaica, que é imposto como sendo o único correto.
Segundo, voltando ao que foi dito há pouco, o cristianismo não reconhece
nenhuma língua como sagrada, de uso obrigatório. Uma das principais
contribuições da Reforma Protestante foi a tradução da Bíblia para diversas
línguas, abolindo a exclusividade do latim, até então a língua litúrgica da
Europa Ocidental. A imposição de uma língua é característica muçulmana, não
cristã. Na tradição islâmica o árabe é língua sagrada. Não há equivalente deste
fato na tradição cristã. Portanto, o Apocalipse de João, que fecha com chave de
ouro a revelação de Deus, fala sobre “grande multidão que ninguém podia
enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e
diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos; e
clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus que se assenta no trono, e ao
Cordeiro, pertence a salvação” (Ap 7.9-10). Além disso, é mais do que provável,
conforme lembram eruditos como Joachim Jeremias, que Jesus e seus
contemporâneos tenham falado aramaico e, não, hebraico. Haja vista o Talita cumi (Mc 5.41). O cego à beira do caminho gritou para Jeshua (com “j” mesmo) “Filho de Davi”, e foi ouvido (Mc
10.47).
Terceiro, nos Discursos de Despedida registrados no Evangelho segundo João, o
Senhor Jesus fala a respeito do Espírito Santo, que viria “a fim de que esteja para sempre convosco” (Jo 14.16). O Espírito de Deus já veio.
Ele é o Espírito da verdade (Jo 14.17). Se o movimento que defende com tanta
ênfase o uso da forma hebraica do nome de Jesus tivesse razão, o Espírito
Santo, logo no início da história da igreja, teria levantado pessoas para
trazerem os fiéis de volta à verdade. É no mínimo, estranho, pensar que o
Espírito da verdade esperasse 2.000 anos para atuar, ainda mais em uma questão
dessa natureza.
Quarto, o movimento Yehoshuah
Hamashiah é típico representante da
efervescência religiosa de fim de milênio. Teóricos em sociologia da religião
lembram ser períodos assim propícios ao aparecimento das mais variadas
propostas de experiências religiosas. Não é coincidência que tal movimento faça
ouvir sua voz no fim do século XX.
Quinto, para utilizar mais uma vez a contribuição das ciências sociais em sua
abordagem do fenômeno religioso: observa-se que o grupo que defende o uso de Yeoshuah é um grupo com características de seita, não de
igreja. Considera-se o único detentor da verdade, contra todas as demais
tradições cristãs. Utiliza linguagem por demais arrogante e ofensiva. Por meio
do conhecimento da língua hebraica, pratica uma manipulação do poder religioso.
Isto fica evidente pelo fato de o líder do movimento se autodenominarHaroeh (“Pastor”,
em hebraico). Por que não utilizar a palavra designativa de sua função em
português? Essa tentativa de hebraização do cristianismo não é santa. Por trás
de uma aparente piedade, esconde-se um jogo de poder. Afinal, são pouquíssimos
os membros de igrejas que possuem algum conhecimento do hebraico bíblico.
Quando surge alguém que conhece um pouco, dizendo que tudo que os outros
aprenderam está errado, fica fácil semear confusão e conquistar adeptos. Em sua
linguagem empafiosa, repetindo o tempo todo que é o único detentor da verdade,
pois seria o único que invoca verdadeiramente o nome do Senhor, o movimento Yeoshuah Hamashiah se esquece de textos como: “Nem todo o que me diz:
Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu
Pai que está nos céus” (Mt 7.21).
Sexto, o movimento comete grosseiro erro teológico quando cita passagens como
Joel 2.32 e Romanos 10.13: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Para o grupo, só será salvo quem invocar o nome Yehoshuah. Deste modo, reduzem o dom da salvação à invocação
mecânica de um nome hebraico. De onde vem a salvação: da graça de Deus, que
nenhum de nós merece, ou da mera pronúncia de um nome hebraico? Parece que a
forma hebraica do nome do Senhor foi transformada em palavra mágica. Outro
problema não tratado pelo grupo é que, em Joel 2.32, o Senhor é Javé. Em Romanos 10.13, citação do texto de Joel, a
palavra Senhor (Javé, em hebraico) é traduzida por Kurios (literalmente Senhor,
em grego). Como bom judeu e bom conhecedor da língua hebraica, Paulo não se
incomodou em traduzir Javé por Kurios. Então, quem será salvo: quem invocar o
nome Javé ou quem invocar o nome Kurios? Assim, parece uma versão “evangélica” das
Testemunhas de Jeová.
A pessoa e o nome
Finalmente, o grupo hebraísta tem uma antropologia distorcida. Na antropologia
bíblica, o nome é como um sinônimo da própria pessoa. A pessoa é o que é, e não
deixa de o ser se seu nome for traduzido ou transliterado para outra língua.
Saulo de Tarso não mudou quando foi chamado de Paulo. Vale lembrar que Saulo é
seu nome hebraico (Shaul, transliterado Saul em português) e Paulo, seu nome latino. Simão não
deixou de ser o que era quando foi chamado por Jesus de Pedro. Mateus e Levi
eram nomes de uma mesma pessoa, e não de duas pessoas distintas. Ainda, Silas e
Silvano eram nomes de uma mesma pessoa, e não de duas pessoas distintas.
Ademais, o nome Josué (equivalente hebraico do nome Jesus — o Novo Testamento
grego não distingue entre Josué e Jesus) aparece como Jeshua cerca de 29 vezes
nos livros de Crônicas, Esdras e Neemias (incluindo Esdras 5.2 em aramaico),
assim como Jehoshuah aparece cerca de doze vezes em Ageu e Zacarias.
Muitas vezes esses dois nomes se referem à mesma pessoa, o filho de Jozadaque.
Vale lembrar que o erudito F. Delitzch, profundo conhecedor da língua hebraica,
mantém a forma Jeshua em sua tradução do Novo Testamento.
Alguns brigam pela obrigatoriedade do uso da forma hebraica do nome de Jesus.
Melhor é abandonar uma postura aguerrida e obedecer ao Príncipe da Paz, que nos
ordenou testemunharmos dele a todos os povos, falantes de todas as línguas.
Pois um dia, na presença do que está assentado no trono e do Cordeiro, o nome
de Jesus será louvado não apenas em hebraico, mas em toda língua falada pela
raça humana.
Vem, Senhor Jesus!
Nota:
1. Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento,
Volume II. Colin Brown (Ed.). São Paulo: Vida Nova, 1982, pp. 484-485.
Carlos R. Caldas Filho, doutorando em ciências da religião na Universidade
Metodista de São Paulo, é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.
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