A perigosa arte de enganar
Alguns divertimentos infantis são universais. Um dos que mais gostávamos, e que
nos entretinha muito, chamávamos de esconde-esconde. Consistia em esconder do
restante dos amigos de tal maneira que ninguém conseguisse nos descobrir. Hoje,
depois de crescido, surpreendo-me que essa brincadeira seja comum também entre
os adultos. Aliás, parece que gente grande gosta mais de brincar de
esconde-esconde que as crianças. Só que agora, o jogo é mais perigoso.
O poeta e a mentira
Mentimos, enganamos e dissimulamos. Criamos mecanismos que nos escondem de nós
mesmos, do próximo e de Deus. Fernando Pessoa olhou para sua própria vida e não
se reconheceu no que foi; escondera-se por detrás de máscaras e, corajoso,
desabafou:
“Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje, não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.”
Eduardo Giannetti, que escreveu um excelente livro com o título Auto-Engano (Companhia das Letras), comentou sobre esta poesia
de Fernando Pessoa: “A experiência do poeta dramatiza e leva ao extremo uma
possibilidade que é comum a todos: será minha esta vida?” Pessoa, de tanto
dissimular, de tanto usar máscaras, já não se encontrava. Laconicamente,
concluiu que não era quem sempre tentou ser, e agora não possuía mais forças
para tentar ser outra pessoa. A máscara estava pegada à cara.
O autor do Eclesiastes buscou descobrir-se e, cansado, declarou: “Pelo que
aborreci a vida, pois me foi penosa a obra que se faz debaixo do sol; sim, tudo
é vaidade e correr atrás do vento” (2.17). Jeremias, também exausto de lidar
com tantos engodos e artifícios de dissimulação, perguntou: “Enganoso é o
coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o
conhecerá?” (17.9).
A mentira e a
história
Os artifícios da dissimulação e do
auto-engano não acontecem somente nos indivíduos. Países como a União Soviética
do expurgo stalinista, a Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, e a
Argentina do regime militar demonstram claramente que a arte da dissimulação
pode ser globalizada.
O próprio cristianismo já sucumbiu várias vezes à mentira. Acreditava-se que as
Cruzadas eram legítimos esforços para resgatar os monumentos cristãos. Hoje,
sabe-se que haviam outros interesses por detrás daquelas empreitadas malucas. O
mesmo pode ser dito da Inquisição, da terrível perseguição que os anabatistas e
pietistas sofreram na Europa, e assim por diante. Matou-se muito em nome de
Deus.
Quando houve eleição para a última constituinte, mentiu-se. Várias igrejas
acreditaram na versão enganosa de alguns candidatos evangélicos: haveria uma
conspiração católica para aprovar uma Constituição discrimi-natória,
favorecendo a Igreja de Roma. Depois, na eleição para presidente, ouviu-se que
determinado candidato mandaria fechar igrejas e reinstituir o comunismo no
Brasil. Os evangélicos votaram maciçamente naquele que acabou eleito. As
conseqüências dessa mentira quase levaram o país a um impasse institucional,
com o impeachment do presidente da República.
Fugindo do
engano
Há meios de nos salvaguardarmos do
auto-engano pessoal ou coletivo. Permitam-me algumas pistas:
Necessitamos de uma idéia menos divina e mais humana de nós mesmos. A pregação
evangélica desses últimos dias vem tão repleta de arroubos triunfalistas, que
um novo cristão pensa nunca ter um revés em sua vida. Doenças, desempregos,
tristezas, mortes prematuras e inúmeros desapontamentos são varridos para
debaixo do tapete religioso, levando as pessoas a viverem uma farsa: os crentes
estão imunes ao sofrimento. Com adesivos nos vidros dos automóveis, caixinhas
de promessas com versículos fora de contexto e sermões superficiais, vai se
disseminando uma mensagem cristã distorcida. As igrejas já não têm espaço para
os que sofrem, faltam-lhes a mensagem de consolo. Despreza-se que doenças,
pobreza, mortes prematuras participam dos relatos bíblicos e da vida dos seus
personagens em proporção maior que curas, riqueza e arrebatamentos espirituais.
Oxalá as igrejas evangélicas não se esquecessem de que na conversão não nos
tornamos anjos, apenas pecadores justificados pela graça. Pensar o contrário é
enganar-se diante de um espelho torto.
Necessitamos rever nosso conceito de fé. Ele também pode gerar auto-engano.
Proponho que, antes de ser uma força dirigida a Deus, que o impulsiona a fazer
aquilo em que estaria hesitante, fé deve ser entendida como uma confiança
inabalável em seu caráter. Essa noção de fé como um poder gera o sentimento
errado de que algumas pessoas têm uma oração mais poderosa que a de outras.
Crentes juram que alcançaram respostas às suas petições porque receberam a
“oração forte” de algum líder religioso. Isso gera uma espiritualidade que
busca a Deus para aumentar a força da fé, nunca para ter maior intimidade com
Ele. Enganam-se os que pensam ter maior cacife espiritual porque conseguiram
arrancar de Deus um maior número de respostas aos seus pedidos. Multidões se
iludem com a possibilidade de que, se aprenderem a fórmula correta de se
dirigir a Deus, vão galgar maior poder espiritual.
Há conseqüências desastrosas em acreditar-se mais “espiritual” que os demais.
Além de ofender a Deus, promover um messianismo patético, isoo gera uma
espiritualidade utilitária. Deus passa a ser apenas um meio, uma força
domesticada. Isso confirma a ilusão luciferiana do Éden: “somos deuses. Podemos
induzir a divindade a agir de acordo com nossos desejos”.
Quem está de pé...
Por último, não podemos acreditar que erros, heresias e muita incoerência só
aconteceram no passado. Criticamos os acontecimentos vergonhosos da Igreja em
séculos passados e não aceitamos que podemos cometer deslizes tão feios quanto
aqueles. A falsa noção de que possuímos uma revelação mais elevada que a de
Pedro, Paulo e alguns dos pais apostólicos pode ser letal. Se a soberba precede
a queda, achar que nos encontramos acima do fracasso já nos faz vulneráveis a
ele — quem está em pé, veja que não caia. Não somos os escolhidos da última
hora nem temos uma graça incomum. O perigo de sermos jogados na outra
extremidade da decepção e do imobilismo é grande, já que ninguém consegue
evitar o tropeço. E se não estivermos preparados para nossos próprios
fracassos, nos afogaremos no oceano da culpa e auto-comiseração. Giannetti nos
adverte: “Quando o mar encrespa e o céu interno fecha, a inflação moral pode
virar forte deflação. O estado depressivo da mente leva um homem a ficar
privado daquele modicum de boa vontade, apreço e respeito por si mesmo que
torna a consciência de si aprazível. O deprimido vive como um pária na sarjeta
de sua convivência interna [‘Não há mendigo que eu não inveje só por não ser
eu’], e sua mente é capaz de dar crédito sincero às mais sombrias e dolorosas
recriminações e confabulações íntimas acerca de si.” O refluxo de tanto
ufanismo pode, no futuro, causar uma enorme depressão.
O salmista perguntou: “Quem há que possa discernir as próprias faltas?”
(19.12). Também pediu: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração: prova-me e
conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo
caminho eterno” (139.23-24). Percebe-se que os mecanismos de auto-engano e da
dissimulação são muito sutis. Portanto, esvaziemo-nos de nossa
auto-suficiência. Busquemos a verdadeira renovação espiritual, promovida pelo
Espírito Santo. Só Ele esquadrinha o coração, prova os pensamentos, e dá a cada
um segundo o seu proceder, segundo o fruto de suas ações.
A Igreja evangélica necessita de uma nova Reforma. Desçamos de qualquer
pedestal da arrogância e da auto-suficiência, e deixemos que a luz
perscrutadora do Espírito penetre em todas as câmaras de nosso viver. Só assim
poderemos nos imaginar noiva do Cordeiro, sem ruga e sem mácula.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim é pastor da igreja Assembléia de Deus Betesda, em São Paulo, e
autor de O
Evangelho da Nova Era, entre outros.
fonte rv.ultimato
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