terça-feira, 31 de março de 2015

E O DILUVIO

                             
                                Os mortos do dilúvio
Um dos personagens da mitologia suméria, na baixa Mesopotâmia, chama-se Utnapishtim. Ele e a família são os únicos sobreviventes de uma inundação que afogou todo o mundo. Ele escapou porque alguém soprou em seus ouvidos que os deuses, depois de uma assembléia, resolveram soltar todas as águas para fazer desaparecer aqueles que tumultuavam o seu sono.

Para salvar-se da enorme tragédia, Utnapishtim deveria derrubar a sua casa e construir um barco comprido e largo, e nele introduzir seus familiares, suas posses, sementes de todas as coisas vivas e um macho e uma fêmea de todas as criaturas vivas, tanto as domesticadas quanto as selvagens.

Depois de seis dias e seis noites de fúria de vento e chuva, a tempestade se acalmou. Ao redor do barco não havia nada mais além da água na superfície da terra. Então Utnapishtim chorou e aumentou o volume da água com suas lágrimas. Finalmente o barco encalhou no monte Nisir, ao noroeste da Pérsia. Para saber se as águas haviam baixado por completo, soltou uma pomba, depois uma andorinha e, por último, um corvo. As duas primeiras aves voltaram, mas o corvo, não, naturalmente porque havia encontrado um lugar para ficar. Agradecidos, os que não morreram ofereceram um sacrifício aos deuses. Logo que Enlil, um dos deuses, sentiu o cheiro agradável do sacrifício de Utnapishtim, ficou furioso por ter havido sobreviventes e descobriu que alguém lhes havia revelado o segredo da punição. Então Ea, o deus que não guardou o conchavo, mentiu e asseverou que o pobre mortal havia sonhado com o dilúvio. Com essa explicação, a raiva de Enlil esfriou e ele abençoou o casal sobrevivente com a imortalidade.

O mito de Kranyatz provém de outra região – da Sérvia, na Europa – e parece-se um pouco com a história de Utnapishtim. Ele também sobreviveu a uma terrível enchente, provocada pelos deuses, devido ao comportamento pecaminoso dos homens. Para não morrer, o gigante Kranyatz teve de escalar a montanha mais alta e pendurar-se numa parreira, onde permaneceu por 9 anos, até que as águas baixassem. Nesse longo período de tempo, a parreira lhe forneceu uvas e suco. Embora tenha sido agraciado, Kranyatz acabou provocando a ira divina e perdeu o privilégio de pular por cima do mar, ou descer até o fundo da terra, ou subir para o paraíso.

Muito semelhante ao mito sérvio, é a versão indígena do dilúvio universal dada por José de Alencar em “O Guarani”, publicado em 1857. Enquanto todos se refugiavam nas montanhas, “Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela o olho da palmeira; aí esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que os alimentavam. Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas. Desceu com a companheira e povoou a terra.”

Essas e várias outras versões do dilúvio bíblico aparecem entre os gregos, galeses, lituanos, escandinavos e islandeses, na Europa; entre chineses, indianos, birmaneses e malaios, na Ásia; entre os aborígines da Oceania (Austrália, Nova Guiné, Micronésia, Melanésia e Macronésia) e entre os indígenas brasileiros (carajás, coroados, guaicurus, tupis e tupinambás).

Uma das últimas descobertas científicas em torno do assunto, realizada pelos geólogos americanos Walter Pitman e William Ryan, co-autores do livro “O Dilúvio de Noé”, publicado em 1998, leva a crer que a violenta inundação ocorrida há cerca de 7.500 anos na região do mar Negro bem pode ter sido o dilúvio narrado no primeiro livro da Bíblia (capítulos 6 a 8 de Gênesis) e citado por Jesus (Mt 24.38-39) e por Pedro (2 Pe 2.5). A pesquisa oceanográfica mostra que há um mar sobre um outro mar no mar Negro e que o primeiro está a 150 metros abaixo do nível do segundo. Uma enchente de enormes proporções teria transformado o antigo lago no mar Negro, de 480 mil quilômetros quadrados e profundidade média de 1.190 metros. Desde 1996 a National Geographic Society tem financiado o Projeto Mar Negro, que está mapeando as antigas praias, hoje inundadas e bem afastadas das praias atuais.

É impossível calcular quantas pessoas morreram afogadas no dilúvio. Sabe-se com precisão quantos foram os sobreviventes: apenas “Noé, o pregador da justiça, e mais sete pessoas” (2 Pe 2.5). Essas sete pessoas eram a esposa de Noé, seus três filhos – Sem, Cam e Jafé – e suas três noras, quatro casais ao todo. Mas os mortos do dilúvio não foram poucos, já que as pessoas viviam muito mais tempo e todos tinham “filhos e filhas” (Gn 5.4, 7, 10 e 13). É muito provável que Noé tivesse outros filhos e não poucos netos, bisnetos, trinetos e tetranetos, já que ele tinha 600 anos quando aconteceu o dilúvio (Gn 7.6).

O dilúvio foi provocado não porque os mortais, com o seu barulho, perturbavam o sono dos deuses, como se vê na epopéia de Utnapishtim, mas por causa da multiplicação e generalização da corrupção e da violência humana (Gn 6.5, 11-12). Pedro chama o mundo antigo, aquele que precedeu o dilúvio, a sociedade contemporânea a Noé, de “o mundo dos ímpios” (2 Pe 2.5). Por trás dessa continuidade (está registrado que o coração humano era “continuamente mau” ou “sempre mau”) e dessa assustadora progressão do mal está o problema básico da devassidão: o sentimento de auto-suficiência em seu auge, aquele que projeta “uma super-humanidade independente do projeto original de Deus” (nota encontrada na Edição Pastoral da Bíblia Sagrada). Daí a intervenção de Deus, ao mesmo tempo justa, punitiva e libertadora. Todas as vezes que o caldo do pecado humano derrama pelas bordas, o cálice da ira divina também entorna o seu conteúdo. O dilúvio é a resposta de Deus à proliferação da violência daqueles dias, antes que ela destruísse o planeta.

Na narrativa bíblica do dilúvio, “rebentaram todas as fontes do abismo e se abriram todas as cataratas do céu” (Gn 7.11, CNBB), e a chuva caiu sobre a terra durante 40 dias e 40 noites. (Na lenda de Utnapishtim foram apenas seis dias e seis noites, e na lenda de Kranyatz, o absurdo de 9 anos.) Os oito sobreviventes – quatro homens e quatro mulheres – e todos os animais que estavam com eles permaneceram na arca pelo período de 1 ano e 17 dias, desde a solene entrada no barco até quando a superfície do solo secou por completo.

Se o dilúvio foi local ou universal não é uma questão nem fechada nem de suma importância. “O Antigo Testamento em Quadros” arrola uma série de evidências e de refutações sobre ambas as interpretações. O que está fora de dúvida é que todos os viventes em todas as regiões então habitadas pereceram submergidos pela água de um poderoso dilúvio (2 Pe 3.5), exceto Noé, o descendente de Sete (o substituto de Abel), de Enoque (aquele que Deus tomou para si) e de Metusalém (o recordista em longevidade) e seus familiares. Esse Noé “era homem justo e íntegro entre os contemporâneos e sempre andava com Deus” (Gn 6.9, CNBB). Sua maior proeza foi não ter seguido a multidão (Ex 23.2; Mt 7.13), embora estivesse dentro dela. Uma análise da árvore genealógica de Noé (Gn 5) mostra que seu pai morreu cinco anos antes do dilúvio.

Para caber a multidão de animais impuros (um casal de cada espécie), de animais puros (sete casais de cada espécie) e de alimento que Noé deveria armazenar para a família e para os animais com mais de 1 ano (Gn 6.21), a arca teria de ser enorme. O barco de três pavimentos tinha 133 metros de comprimento, 22,5 de largura e 13,5 de altura (Gn 6.14-16). Desse mesmo comprimento era o maior navio da frota do almirante chinês Tseng He, que singrava o oceano Índico na primeira metade do século 15. Com quinhentos homens a bordo, o barco carregava toneladas de arroz e outros alimentos para a tripulação e muitas mercadorias – inclusive barris de pimenta – para serem trocadas ou doadas nos portos visitados. A preservação dos animais está ligada à providência de Deus que provê água e alimento para o homem (Sl 104.10-15; Mt 6.26), mas também tem o propósito de preservar as espécies, completar a dieta humana (Gn 9.3; Dt 12.15) e prover animais para os holocaustos (Gn 8.20; Lv 1.1-17).

FONTE REV.ULTIMATO 



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