Qual é o futuro do Israel de Deus?
Há uma só passagem em toda a Bíblia que faz referência ao “Israel de Deus” e,
dentro do seu contexto maior (Gl 6.11-16), refere-se àqueles que, pela cruz de
Cristo, são novas criaturas, em outras palavras, genuinamente cristãos: “E, a
todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz e misericórdia sejam
sobre eles e sobre o Israel de Deus” (Gl 6.16).
Há certa dúvida se a expressão “Israel de Deus” refere-se a todos os cristãos
ou especificamente aos judeus cristãos. Mas não há dúvida que, sejam gentios e
judeus cristãos ou apenas judeus cristãos, refere-se a pessoas cristãs. Essa,
em síntese, é a perspectiva do Novo Testamento de modo geral, como veremos mais
adiante. O Israel de Deus são os discípulos de Jesus entre os judeus e os não
judeus. E, se essa for a perspectiva do Novo Testamento, podemos concluir que é
a perspectiva “cristã”. Vejamos que não é a única perspectiva “bíblica”, pois é
possível tirar outras conclusões a respeito de Israel a partir do Antigo
Testamento, que ou descarta a perspectiva do Novo Testamento ou “pula” essa
perspectiva para outra futura. Explico a seguir.
Logo no primeiro livro da Bíblia, Deus estabeleceu um povo separado para si e
lhe fez promessas. As passagens são muitas ao longo do Antigo Testamento, mas
começam em Gênesis 12.1-3:
“Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de
teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te
abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te
abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as
famílias da terra” (veja também Gn 13.15,17; 17.8; 18.18; 48.3-4; Êx 32.13; Js
1.3-4; Dt 11.24-25; 34.4; 2Cr 20.7; Is 34.17; Jr 7.7; 25.5; Ez 37.25; Jl 3.20).
Nesta passagem e em outras, por mais importante que seja o aspecto geográfico
da promessa (“sai da tua terra [...] e vai para a terra que te mostrarei”),
esse aspecto é apenas o meio para alcançar um fim maior, um fim essencialmente
“missionário” (“em ti serão benditas todas as famílias da terra”). Para
abençoar todas as famílias da terra, Israel precisa se constituir em povo, e,
para se constituir como povo, é necessário um local, isto é, uma terra. Esta
finalidade maior de abençoar os povos ocorre na repetição dessa promessa aos
patriarcas e, mais tarde, na formalização desse pacto no monte Sinai. Aqui, a
peculiaridade da eleição de Israel não deve ser entendida como um fim em si,
mas, novamente, um meio para alcançar um fim maior por meio do seu papel de
intercessor, de alcançar “todos os povos”.
“Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha
aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos;
porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”
(Êx 19.5-6, veja a citação desta passagem em 1 Pedro 2.9).
Ou seja, as promessas de Deus para Israel1 sempre visavam, em última análise,
este fim maior de ser “luz para os gentios” (Is 42.6; 49.6). E é exatamente
esse alvo que é alcançado por meio de Jesus Cristo, e é essa a perspectiva
consensual do Novo Testamento. O próprio Antigo Testamento prepara o leitor
para essa perspectiva, especialmente no livro de Isaías, ao estreitar as
promessas de Deus para Israel a um remanescente fiel (Is 7.6; 10.19-22; 11.11,
16; 17.3; 28.5; 37.4, 31-32). E é o Antigo Testamento, não o Novo, que anuncia
o dia que Deus iria agir por meio de uma nova aliança, e não por meio da
antiga.
“Eis aí vêm dias, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de
Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no
dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles
anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor.
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles
dias, diz o Senhor: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração
lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jr 31.31-33).
As genealogias de Jesus, o seu batismo em Mateus (1.1-16; 3.13-17) e em Lucas
(3.21-38) e a afirmação inequívoca de que no ministério de Jesus o governo de
Deus havia finalmente chegado (Mt 12.22-32; Mc 3.20-30; Lc 11.14-23) são alguns
dos muitos exemplos da convicção dos evangelistas de que as promessas de Deus
feitas na antiga aliança encontraram o seu cumprimento em Jesus (tema
incansável também da Epístola aos Hebreus). Os primeiros leitores desses
Evangelhos entenderam muito bem que, na escolha dos doze discípulos e na
insistência da igreja de completá-los depois da apostasia de Judas, o “Israel”
estava sendo reconstituído. A afirmação de Jesus de reconstruir o templo em
três dias (Mt 26.61; 27.40; Mc 14.58; 15.29; Jo 2.19-20), sem referência alguma
a outra reconstrução futura, tem o mesmo efeito. Jesus, o alvo final da redução
de Israel por meio de um remanescente cada vez menor, reconstituiu o povo de Deus
e, por meio da incumbência missionária dada aos seus discípulos, começou o
processo de ampliá-lo, sendo constituído de judeus e não judeus que creem nele
(Rm 1.16-17; 2Co 5.17; Ef 2.11-22). E, como o alvo do chamado de Israel no
Antigo Testamento foi abençoar todas as famílias da terra, este continua sendo
o alvo do povo de Deus reconstituído por Jesus até o fim: “E será pregado este
evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então,
virá o fim” (Mt 24.14, veja Mc 13.10; Lc 21.7-28).
Aliás, essa passagem já aponta para o futuro do Israel de Deus, assunto último
desta reflexão. Pois fim (telos) deve ser entendido como alvo “último”, e não
alguma etapa penúltima ou antepenúltima. Fim é final! É a mesma perspectiva de
Paulo, que compreende esta como a época em que Jesus está “sujeitando todas as
coisas debaixo dos seus pés”, isto é, ampliando o seu governo, e isto antes do
“fim”, que, por sinal, também é um fim final (1Co 15.23-28), e não um prelúdio
para um suposto restabelecimento de Israel como etnia e como nação.
A esta altura, várias dúvidas devem aparecer para o leitor. Por exemplo, quer
dizer que Israel como nação ou etnia não será reconstituído? Não voltará à sua
terra? Se for assim, como entender o ressurgimento, de fato, da nação de
Israel? Há duas dimensões em relação a essas indagações: uma dimensão
bíblico-cristã e uma contemporânea. Nesta reflexão estamos tratando da primeira
dimensão. Entretanto, a segunda ainda persiste. Ou seja, mesmo que concluamos
que as promessas de Deus para Israel no Antigo Testamento se cumprem no
evangelho de Jesus Cristo para judeus e não judeus (Rm 1.16), ainda é possível
afirmar que, de alguma forma, a mão de Deus estava agindo no estabelecimento do
atual Estado de Israel?2 Claro
que isso é possível, mas da mesma forma que Deus age em qualquer outra
circunstância ao longo da história, e não como cumprimento das promessas do
Antigo Testamento. Do contrário, a revelação de Deus no Novo Testamento seria
desprezada. E, de todo modo, o Estado de Israel, sendo constituído ou não como
consequência das promessas de Deus no Antigo Testamento, nem por isso tem carta
branca para cometer injustiças, da mesma forma que Israel no Antigo Testamento
nunca teve e da mesma forma que a Igreja – judeus e não judeus em Cristo – não
tem. Mas o que o Novo Testamento diz a respeito do retorno dos judeus à Terra
Prometida? E o que diz a respeito do futuro dos judeus?
Curiosamente, o Novo Testamento nada diz explicitamente a respeito do retorno
dos judeus à Terra Prometida, até mesmo no longo discurso de Paulo sobre o
“futuro” de Israel (Romanos 9–11). Há vários motivos possíveis para esse
silêncio. O primeiro e mais óbvio é que os judeus já estavam na Palestina
quando o Novo Testamento foi escrito. Entretanto, essa observação leva a duas
deduções. Por um lado, pode-se concluir que dificilmente é possível falar sobre
um retorno se não houver primeiro um êxodo. Por outro lado, pode-se concluir
que, os judeus já estando na Palestina, o pressuposto do Novo Testamento é que
as promessas de retorno do Antigo Testamento já se cumpriram. Nenhuma dessas
duas deduções são conclusivas em si, pois é difícil tirar conclusões a partir
do silêncio. Mas temos algumas pistas.
Por exemplo, veja como Paulo refere-se a uma das promessas a respeito da Terra
Prometida:
“Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo. Honra a teu pai e
a tua mãe (que é o primeiro mandamento com promessa), para que te vá bem, e
sejas de longa vida sobre a terra” (Ef 6.1-3, grifo meu, cf. Êx 20.12; Dt
5.16).
A frase em Efésios “sobre (grego: epi) a terra” é genérica, ao passo que a
passagem citada em Êxodo é específica: “Na (hebraico:‘al) terra que o Senhor,
teu Deus, te dá”. Isto sugere que a promessa de uma terra específica
(Palestina) já fora reinterpretada para se referir genericamente ao mundo
inteiro ou a toda a terra, como no caso das múltiplas referências à incumbência
missionária (Mt 28.18-20; Mc 16.15-18; Lc 24.48-49; Jo 20.21; At 1.8; Rm
10.17-18). Unindo essa observação àquela acerca do cumprimento em Jesus e nos
seus “descendentes” das promessas feitas por Deus no Antigo Testamento, o
silêncio do Novo Testamento começa a fazer mais sentido.
Falta uma passagem importante a se considerar: “E, assim, todo o Israel será
salvo, como está escrito: Virá de Sião o Libertador e ele apartará de Jacó as
impiedades. Esta é a minha aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados”
(Rm 11.26-27, cf. Is 59.20-21; Jr 31.33-34).
Por “Israel” não se entende os judeus? E não diz que “será salvo”? Sim às duas
perguntas, mas com as devidas observações. Primeiro, apesar de os reformadores
entenderem que “todo o Israel” refere-se à igreja como um “novo Israel” (uma
frase que nenhum autor do Novo Testamento usa), hoje os estudiosos concordam
que a leitura de Romanos 11 praticamente exige que a referência aos gentios
seja a de gentios mesmo, e a referência a Israel seja a de judeus. Portanto,
sim, “Israel” aqui refere-se a judeus, porém, só podem ser judeus que estão em
Cristo. A leitura de Romanos 9 e 10.4 exigem essa observação.
O uso dos verbos será e virá é de fato uma referência ao futuro? Claro que sim.
Mas se trata do futuro de quem? De Paulo ou de Isaías e Jeremias, que ele está
citando? Pode parecer que seja do futuro de Paulo (e, por isso, o nosso futuro).
Entretanto, o próprio Paulo costuma citar profecias do Antigo Testamento
formuladas no tempo futuro para se referir ao presente. Aliás, ele fez isso
diversas vezes no final dos três últimos versículos do capítulo anterior (Rm
10.19-21; veja também Rm 9.25-33). Isto deve ser o suficiente para indicar que
Paulo está citando uma profecia formulada no tempo futuro para se referir ao
seu presente e à salvação, por meio de Jesus, de muitos judeus. Mas, para
fechar essa questão, Paulo ainda cita Jeremias 31.33-34, que só pode ser uma
referência à época inaugurada por Cristo.
Logo, qual é o “futuro” de Israel? É um futuro muito mais belo e promissor que
as interpretações sobre a restauração da Lei e do Templo (veja Rm 10.4). O seu
futuro é o mesmo futuro de todos aqueles que são discípulos de Jesus. É a
transformação em novas criaturas. E é a possibilidade de cumprir finalmente a
razão do seu chamado: abençoar todas as famílias da terra por meio de Jesus (Ef
1.3-14).
Incrível? Pode parecer, mas comecei a entender isso melhor, na prática, quando,
no final dos anos 80, eu era assistente do professor Arthur Glasser, no
Seminário Fuller, nos Estados Unidos, que havia iniciado um programa de
mestrado em teologia para judeus cristãos – ou, como preferem ser chamados,
judeus messiânicos. Eram pessoas muito capacitadas e dedicadas, e, como
assistente do professor, eu tive a tarefa de ler os seus ensaios e lhes
atribuir notas de avaliação. Durante dois anos tive o privilégio de aprender
com suas pesquisas, que revelavam muitos movimentos de conversão a Jesus por
judeus durante toda a história da igreja. Comecei a perceber o quanto o
apóstolo Paulo tinha razão a respeito do cumprimento das promessas de Deus
tanto para judeus quanto para não judeus por meio da transformação deles em
discípulos de Jesus, o Messias, e do cumprimento das promessas de Deus de
abençoar os descendentes de Abraão, inclusive abençoando todas as famílias da
terra. Seria trágico da parte da igreja privar os judeus que não conhecem Jesus
desta bênção, em nome de uma teologia que efetivamente negue este cumprimento.
Notas
1. Há 68 ocorrências da palavra grega “israēl” no Novo Testamento, sendo doze
em Mateus, duas em Marcos, doze em Lucas, quatro em João, quinze em Atos,
dezessete nas cartas de Paulo (onze somente em Romanos 9-11, duas em 2
Coríntios e uma em cada uma das seguintes cartas: 1 Coríntios, Gálatas,
Efésios, e Filipenses), três em Hebreus e três em Apocalipse.
2. Vale ressaltar que 43% dos judeus do mundo vivem em Israel (40% vive nos Estados
Unidos), e que o israelense é tanto judeu (75%) quanto árabe (21%) e outros
(4%). Os árabes e os grupos étnicos ou são de religião muçulmana ou cristã.
Que tristeza!
Deus enviou o próprio filho a seu povo e este não o acolheu!
João,
o apóstolo amado, não escondeu nem complicou. Logo no prólogo de seu Evangelho,
depois de afirmar que Jesus “estava com Deus e que era Deus” e que “nada de que
existe foi feito sem ele”, João explica que Jesus veio para a sua própria gente
e para o mundo, “mas os seus não o quiseram, não o receberam, não o acolheram”
(Jo 1.11).
Essa é uma maneira muito curiosa de começar a biografia de alguém que veio
mudar a história humana. A glória da expiação consumada na cruz e a glória da
ressurreição consumada no túmulo vazio são narradas nos três últimos capítulos
do quarto Evangelho. A não aceitação do Messias pelo povo de Israel, pois, não
equivale a um fracasso!
Os seus não o [Jesus] receberam naqueles dias nem mudaram de ideia a respeito
dele até hoje, salvo raras exceções. Embora a porta não fosse fechada para os
judeus, em pouco tempo, os não judeus, bem mais distantes em matéria de
experiência religiosa e de costumes, foram aceitando o evangelho mais depressa
e em maior número do que o povo eleito.
Os sinais operados por Jesus não foram suficientes para mover o povo até ele. É
verdade que os judeus deveriam tomar cuidado tanto com os falsos profetas
quanto com os falsos cristos. O próprio Jesus os advertiu quanto a esse risco.
Mas o Senhor era o autêntico Messias, pelo que fazia e pelo que falava. Além
disso, mesmo sem a presença física de Jesus, o cristianismo cresceu e continua
a crescer, passados mais de dois milênios, diferentemente da total evasão dos entusiasmados
seguidores de Teudas e Judas, o Galileu, citados por Gamaliel na reunião do
Sinédrio (At 5.33-39).
O povo de Israel de ontem e de hoje ainda está à espera do Messias prometido
pelos profetas. Mas a visão que eles têm do Messias é muito diferente. Como diz
o judeu polonês Hugo Schlesinger, “A tradição judaica encara o Messias não como
ser divino, mas apenas humano, um grande chefe, reformador social, que ensejará
uma era de perfeita paz”. Entretanto, mais recentemente – continua Schlesinger,
autor do “Pequeno Vocabulário do Judaísmo” (Paulinas, 1987) –, o Messias vem
sendo interpretado “não como ente individual, mas como sendo globalmente a
própria humanidade numa fase futura de sua evolução, quando ela tiver alcançado
um nível de perfeição”. A esperança cristã de um novo céu e uma nova terra,
porém, está depositada não na evolução social e ética da sociedade, mas naquilo
que Jesus já fez em sua primeira vinda e no que fará em sua segunda vinda.
O Israel de Deus tem rejeitado o Jesus da Bíblia e dos cristãos, como se pode
ler no livro “Os Porquês do Judaísmo”, escrito em 1983 pelo rabino Henry Sobel:
“Acreditamos que Jesus foi um grande homem, um grande mestre que pregou os
ideais universais da fé judaica, um ser humano dotado de grande sensibilidade e
percepção. Não aceitamos alguns dos seus ensinamentos, aqueles que são
incompatíveis com os preceitos do judaísmo.”
“Apenas alguns exemplos: Jesus acreditava ter o poder de perdoar pecados,
enquanto o perdão, sob a perspectiva judaica, pertence somente a Deus. Jesus
alegava ter o poder de ressuscitar mortos, ao passo que os profetas hebreus,
quando operavam um milagre, frisavam que o faziam como meros instrumentos de
Deus.”
“O judaísmo não reconhece um ‘Filho de Deus’ que se destaca e se eleva acima
dos outros seres humanos. A convicção judaica é de que todos os homens são
iguais perante a divindade.”
O Israel de Deus tem sido muito injusto e ingrato com Deus. “Porque Deus amou
tanto o mundo que deu o seu Filho único para que todo aquele que crer nele não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Para ele, Jesus não é o Filho (com
“F” maiúsculo) de Deus, não foi enviado por Deus, nem é o instrumento de
salvação e de vida eterna. Os judeus não acreditam na concepção sobrenatural de
Jesus (ele poderia ser fruto de um romance de Maria com um soldado romano), nas
ressurreições e outros milagres realizados por Jesus, na morte expiatória de
Jesus, na ressurreição de Jesus, na ascensão de Jesus, na volta gloriosa de
Jesus e tudo mais. Na teologia judaica, a cristologia desmorona por completo,
de alto a baixo.
O que conforta os cristãos é esta passagem do Apocalipse:
“Olhem! Ele vem com as nuvens! Todos o verão, até mesmo os que o atravessaram
com a lança. Todos os povos do mundo chorarão por causa dele. Certamente será
assim. Amém!” (1.7).
Que beleza! O plano de Deus para o mundo por meio do povo de
Israel não foi um fracasso!
A implantação do monoteísmo
Antes da chamada de Abrão, praticamente todas as nações eram politeístas. Tanto
no Antigo como no Novo Testamento, o povo de Deus (tanto os judeus como os
cristãos) era cercado de um grande número de deuses pagãos. Na cidade de
Atenas, por exemplo, havia imagens de deuses em cada esquina (At 17.22). Era
uma calamidade. Cada país tinha os próprios deuses.
Numa lista em ordem alfabética bastante incompleta estariam os nomes de
Adrameleque, Baal, Bel, Dagom, Dióscuros, Hórus, Júpiter, Mercúrio, Merodaque,
Moloque, Nebo, Nergal, Nisroque, Osíris, Quemós, Rimom, Tamuz e Tartaque. Havia
também deusas, como Anate, Aserá, Astarote, Diana, Hator, Ísis, Nut e
Sucote-Benote. Quase todos são citados na Bíblia. A representação desses deuses
era muito estranha. Rá, o deus do sol, a divindade suprema dos antigos
egípcios, era representado como homem com cabeça de falcão, coroado com um
disco solar e a figura de uma víbora. A deusa Hator tinha cabeça de vaca e
corpo de mulher. E assim por diante.
Enquanto Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança (Gn 1.26), o ser
humano criou deuses à sua imagem decaída. Eles são tão ou mais corruptos que a
criatura humana. Os deuses têm inveja, são odiosos, roubam, adulteram e
assassinam. Nesso, por exemplo, tentou violentar Dejanira, esposa de Hércules,
o herói por excelência da mitologia grega, quando a levava de barco para a outra
margem do rio (o marido ia a nado). Ao ouvir o pedido de socorro, Hércules
feriu mortalmente a Nesso com uma flecha. Este, por sua vez, antes de morrer,
teve tempo para providenciar a morte do seu desafeto. Tempos antes, Hércules
havia sido levado por sua mãe a pôr fogo na casa dele, matando a mulher e os
filhos. O deus Hermes era o protetor dos ladrões e teve numerosos casos
amorosos, deixando uma multidão de filhos. O helenista Mário da Gama Kury, em
seu “Dicionário de Mitologia”, dedica um verbete para aproximadamente 3 mil
deuses, incluindo apenas os das civilizações grega e romana. Hoje, por
influência do exemplo do Israel de Deus e pelo trabalho missionário cristão, o
politeísmo não é predominante. As três religiões monoteístas mais expressivas do
mundo (o cristianismo, o islamismo e o judaísmo) têm quase 4 bilhões de fiéis e
representam cerca de 54% da população mundial.
A produção da Sagrada
Escritura
Embora Deus nos fale por meio da beleza e da exuberância da criação e por meio
daquela insistente sede interior que temos dele, o principal meio pelo qual ele
se revela e se torna conhecido de nós é a Sagrada Escritura, também chamada,
apropriadamente, de a Palavra de Deus. A cristandade e o mundo inteiro têm uma
dívida enorme com o povo de Israel, pois foi por meio dele que a Bíblia chegou
a nós. Com exceção apenas do Evangelho de Lucas e do livro de Atos dos
Apóstolos, todos os demais 64 livros da Sagrada Escritura foram produzidos por
patriarcas, profetas e apóstolos judeus (quanto à religião) e israelitas
(quanto à nacionalidade).
Os 39 livros que formam o Antigo Testamento foram escritos em hebraico e
aramaico ao longo de aproximadamente mil anos. Os 27 livros do Novo Testamento
foram escritos em grego durante cerca de sessenta anos. Se o primeiro
Testamento é um prelúdio para a vinda de Jesus, o segundo conta a história da
chegada dele ao mundo, sua vida, seu ministério e sua igreja. Os dois
Testamentos são duas fases de um ato só, ou dois volumes de uma revelação só,
de uma história só, de um enredo só. Ambos testificam de Cristo (Jo 5.39).
“O ensino principal das Escrituras é aquilo que o ser humano deve crer acerca
de Deus e o dever que Deus requer dele”, segundo o Catecismo Menor. A Confissão
de Fé da Igreja da Inglaterra declara solenemente que “as Sagradas Escrituras
contêm tudo quanto é necessário para a salvação”, de tal modo que qualquer
acréscimo não é digno de fé. Outra confissão esclarece que “as Escrituras não
são um testemunho entre outros, mas o testemunho sem paralelo”.
A Bíblia é o livro mais copiado à mão (antes da invenção da imprensa), mais
impresso, mais traduzido (a Bíblia inteira já foi traduzida para 485 línguas; o
Novo Testamento, para 1.249; e alguma porção dela, para 810), mais vendido,
mais presenteado, mais revisado, mais lido e mais querido, antes de Cristo
(apenas o Antigo Testamento) e depois de Cristo. Com o advento de muitas
versões paralelas e de muitas Bíblias com notas de rodapé, é possível que
vários crentes tenham pelo menos meia dúzia de Bíblias. Se cada cristão tiver
pelo menos três exemplares da Bíblia em versões diferentes, em média haveria
uma Bíblia para cada um dos 7 bilhões de habitantes do planeta!
Em sua Carta aos Romanos, Paulo, o mais famoso judeu convertido ao cristianismo
e autor de treze livros do Novo Testamento, perguntou: “Haverá alguma vantagem
em pertencer ao povo escolhido [o Israel de Deus]?”. Ele mesmo responde: “Tem,
sim, e de muitas maneiras! E a primeira vantagem é que Deus entregou a sua
mensagem aos cuidados dos judeus” (Rm 3.1-2).
O advento de Jesus
A Bíblia ensina que no princípio mais remoto, antes mesmo da fundação do mundo,
lá na eternidade, Jesus já estava com Deus e era Deus. Depois, no tempo
preestabelecido, Deus achou por bem enviá-lo ao mundo, nascido de uma mulher
(Gl 4.4). Então, Jesus se tornou um ser humano e morou entre nós, cheio de amor
e de verdade, e os seus contemporâneos viram a sua glória, a glória do Filho
único do Pai celestial (Jo 1.14). Foi uma ocasião muito especial, pois Jesus se
tornou a revelação visível do próprio Deus invisível. Por meio dele, Deus havia
criado tudo, no céu e na terra, tanto o que se vê como o que não se vê (Cl
1.15-16).
Para se tornar humano, Jesus abriu mão de tudo o que era seu, isto é, deixou de
lado os privilégios da divindade e tornou-se igual a nós, seres humanos (Fp
2.7). Na verdade, ele veio ao mundo para salvar, buscar e restaurar quem estava
perdido (Lc 19.10).
A encarnação de Jesus se deu numa família judaica e israelita de Nazaré, na
província da Galileia. Maria, a mãe, e José, o pai adotivo, pertenciam ao povo
de Israel. Por parte de ambos, Jesus era descendente de Abraão, o pai do povo
eleito, e descendente de Davi, o primeiro rei de Israel (Mt 1.1-16, Lc
3.13-38).
Jesus não apenas nasceu, mas também cresceu no judaísmo. Cumpriu todos os ritos
judaicos. Foi o maior judeu de toda a história, maior do que Abraão, maior do
que Jacó, maior do que Salomão, maior do que Jonas. Se o templo de Jerusalém
era a maior relíquia do povo, Jesus era maior do que o templo (Mt 12.6).
Jesus não se equivocou quando disse tranquilamente à mulher samaritana: “O
caminho de Deus para a salvação veio por meio dos judeus” (Jo 4.22). Essa é
outra dívida do mundo para com o Israel de Deus!
O povo de Israel é o povo que mais conviveu com as coisas
maravilhosas que Deus faz
Muitos
salmos referem-se às coisas maravilhosas que Deus faz com o seu povo. Um deles
é especialmente bonito: “Ando em volta do teu altar junto com os que te adoram,
cantando um hino de gratidão e falando das tuas obras maravilhosas”. Em vez de
“coisas maravilhosas”, o salmista poderia ter usado outras palavras, como “atos
portentosos” ou “milagres”.
O que nós chamamos de milagre? Os dicionários seculares dizem que é um feito ou
ocorrência extraordinária que vai de encontro às leis da natureza. Os
dicionários de teologia são mais densos:
“O milagre se caracteriza por ser uma intervenção divina na vida do ser humano
ou na natureza, realizando algo impossível para a ação humana” (Dicionário
Brasileiro de Teologia).
“O milagre é um fato sensível, fora do curso natural das coisas, que Deus
produz num contexto religioso como um sinal do sobrenatural” (Dicionário de
Termos da Fé).
“Os milagres bíblicos têm um objetivo nítido: visam colocar em relevo a glória
e o amor de Deus e, entre outras coisas, desviar a atenção do homem dos eventos
corriqueiros da vida cotidiana, direcionando-a aos atos poderosos de Deus”
(Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã).
“Pela etimologia, as palavras ‘milagre’ e ‘maravilha’ se referem ao assombro e
espanto causados por um evento incomum ou inexplicável. No contexto religioso, tem
sua origem atribuída a uma influência divina transcendente” (Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento).
“Milagre é a livre intervenção de Deus no interior da criação e nas pessoas
para expressar a vitória sobre o mal e o chamado à participação de seu reino”
(Dicionário Teológico Enciclopédico).
Desde o surgimento de Israel, com a chamada de Abrão, algum tempo depois do
dilúvio e da Torre de Babel, por volta do ano 2000 antes de Cristo, o povo
judeu tem convivido com as tais coisas maravilhosas realizadas por Deus.
1. O homem que Deus vocacionou para ser o pai de uma “grande nação” era casado
com uma mulher teimosamente estéril. E Deus não a tornou fértil senão depois,
quando ela já havia passado por uma longa menopausa e quando ele já era velho
demais para se tornar pai de uma criança. Levando em conta que Abraão, depois
de viúvo, casou-se outra vez e teve outros filhos (Gn 25.1), é provável que ele
e Sara tenham sido rejuvenescidos pelo poder de Deus. A Bíblia diz que Abraão,
“esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações” (Rm
4.18).
2. Por ocasião do êxodo do povo de Israel do Egito para a terra de Canaã, houve
uma série extraordinária de milagres pelos quais Deus se revelava aos
israelitas e rebaixava o orgulho do faraó Ramsés II. É notável que as famosas
pragas tenham atingido apenas os egípcios e deixado intocados os descendentes
de Abraão. Mais notável ainda é a abertura do mar Vermelho somente no momento
em que o povo eleito passava de uma margem à outra. Mais extraordinários seriam
a coluna de nuvem (durante o dia), a coluna de fogo (durante a noite) e o maná
providenciados milagrosamente por Deus dia após dia durante quarenta anos! Por
quase 15 mil dias Deus alimentou milhares de pessoas. O milagre do “pão dos
anjos” (Sl 78.24) ou “pão do céu” (Sl 105.40) tornou-se muito mais fantástico
com a afirmação de que ele caía pontualmente em porção dobrada apenas na
sexta-feira, para que o povo santificasse o sábado. Em qualquer outro dia da
semana, o maná estragava se fosse guardado para ser comido no dia seguinte (Êx
16.19-26).
3. No correr da história de Israel, da posse da terra prometida (1375 a.C.) até
a reconstrução do templo de Jerusalém (516 a.C.), aconteceram outros milagres,
principalmente durante o ministério de Elias e Eliseu. O primeiro deles é o
estranho prolongamento da claridade do sol durante a batalha de Israel contra
os amorreus: “O sol ficou parado no meio do céu e atrasou a sua descida por
quase um dia inteiro” (Js 10.13). Outros milagres curiosos foram o fogo que
“queimou o sacrifício, a lenha, as pedras, a terra e ainda secou a água que
estava na valeta” (1Rs 18.38), em resposta à oração de Elias, embora tudo
estivesse encharcado de água, e o machado que flutuou tendo antes caído no
leito do rio Jordão (2Rs 6.6).
Para Elias matar a sede, nada havia de sobrenatural: ele descia até o riacho de
Querite e bebia água à vontade. Mas, para matar a fome, o profeta se valia de
algo inédito: comia pão com carne que os corvos lhe traziam todas as manhãs e
todas as tardes (1Rs 17.4-6). A primeira multiplicação inexplicável de pães da
história não foram as multiplicações de pães e peixes realizadas por Jesus, mas
a que aconteceu mais de oitocentos anos antes, em Baal-Salisa, na época de
Eliseu: vinte pães foram suficientes para alimentar cem profetas e ainda houve
sobra (2Rs 4.42-44). Esses dois profetas notáveis ressuscitaram duas crianças
sem vida: Elias arrancou da morte o filho de uma viúva pobre, a viúva de
Sarepta (1Rs 17.19-24), e Eliseu arrancou da morte o filho de uma viúva rica, a
viúva de Suném (2Rs 4.32-37).
Além desses milagres, é preciso mencionar ainda o arrebatamento sobrenatural de
Elias (2Rs 2.11), a cura instantânea de Naamã, o comandante do exército sírio
(2Rs 5.14), a sobrevivência de três exilados judeus lançados na fornalha de
fogo ardente (Dn 3.28) e o aparecimento da mão que escreveu a sentença de
Belsazar na parede branca de seu palácio (Dn 5.5).
4. Com Jesus Cristo, os milagres deixam de ser eventos raros para ser uma
normalidade. Embora não o tenham aceito como o Messias que deveria vir, os
judeus conviveram com os atos portentosos realizados por ele nos seus três
últimos anos de vida, e não conseguiram contestá-los. Após a ressurreição de
Lázaro, por exemplo, o Sinédrio concluiu: “O que é que nós vamos fazer? Esse
homem está fazendo muitos milagres! Se deixarmos que ele continue fazendo essas
coisas, todos vão crer nele” (Jo 11.47-48). Como não era possível negar a
ressurreição de Lázaro e outros milagres, as autoridades resolveram acabar não
com os milagres, mas com a vida daquele que os realizava. A ameaça era tão
séria que Jesus “já não andava publicamente na Judeia” (Jo 11.53-54).
Uma nova fase da história estava começando e, como afirma John Stott, “o
propósito principal dos milagres em toda a Escritura era autenticar cada novo
estágio da revelação”.
Quais foram os “muitos milagres” feitos por Jesus? O Senhor não dava a menor
importância às leis da natureza, sendo ele o parceiro de Deus na criação do
mundo (Jo 1.3). Por essa razão, ele não fez esforço algum para acalmar o vento
e as ondas encapeladas do mar da Galileia (Mc 4.37-39) nem para caminhar sobre
a superfície líquida do mesmo mar (Mc 6.48-50). Jesus não arredou o pé do lugar
onde estava para transformar mais de quinhentos litros de água potável em vinho
do melhor (Jo 2.6-9). Sem espalhafato algum, o Senhor duas vezes seguidas
multiplicou pães e peixes para alimentar uma multidão de 5 mil pessoas na
primeira oportunidade (Mt 14.21) e uma multidão de 4 mil na segunda (Mt 15.38),
sem contar mulheres e crianças. Era comida com tanta fartura que todos ficaram
saciados e ainda encheram doze cestos de sobras na primeira ocasião e sete
cestos na segunda.
Jesus curou todo tipo de doença – mental, espiritual, emocional ou física (Mt
4.23-25). Não eram curas psicológicas nem demoradas. Eram curas imediatas e
completas. As mais fantásticas foram a da mulher continuamente hemorrágica por
doze anos (Mc 5.25-34), a da mulher continuamente encurvada por dezoito anos
(Lc 13.11-12) e a do homem continuamente paralítico por 38 anos (Jo 5.5-9).
Pelo menos, três mortos foram ressuscitados por Jesus: uma menina de 12 anos
que tinha acabado de morrer (Mt 9.18-26), um rapaz que estava a caminho do
cemitério para ser sepultado (Lc 7.11-15) e um homem que já estava sepultado e
em estado de putrefação (Jo 11.38-41).
As autoridades religiosas de Jerusalém ficaram sabendo da ressurreição de Jesus
no mesmo dia em que o fato aconteceu, não pela boca dos discípulos, mas pela
informação dos guardas credenciados para guardar o túmulo. E, para esconder o
fato, lançaram mão do suborno (Mt 28.11-15). Esse é o milagre que deu origem ao
cristianismo e sacralizou o primeiro dia da semana, chamando-o de domingo – o
dia do Senhor.
Mas ainda há outro prodígio relacionado com Jesus: no momento exato em que o
Senhor dava o seu último grito, derramando a sua alma na morte (Is 53.12), o
véu que separava a área geral de adoração (o santuário) do Santo dos Santos
rasgou-se em dois pedaços, de cima até embaixo (Mt 27.51). Não foi mão leviana
alguma que cortou o véu. O novo tomou o lugar do velho por iniciativa divina no
momento em que o verdadeiro sacrifício pelo pecado tinha acabado de se
consumar!
O povo de
Israel é...
Um povo eleito
Quando Abraão morava em Harã, uma cidade ao norte da Mesopotâmia, Deus, em sua
soberania, o elegeu para ser o pai de uma grande nação que, por sua vez, seria
uma bênção para todas as nações daquela época e das épocas seguintes, no
sentido religioso (Gn 12.1-3). Israel tinha consciência de que era o povo
eleito, mas muitas vezes perdia a noção de que essa eleição tinha uma conotação
altamente missionária. Quando o povo estava quase chegando à terra prometida,
Moisés disse-lhes: “Entre todos os povos da terra ele [Deus] escolheu vocês
para serem somente dele” (Dt 7.6). Muitos anos depois, na época do rei Uzias,
Deus declarou à nação de Israel pela boca do profeta Isaías: “Escute, Israel,
pois você é o meu servo, o povo que eu escolhi! Eu, o Senhor, sou o seu Criador
e o tenho ajudado desde o dia em que você nasceu. Israel, meu servo, não fique
com medo, pois eu o amei e o escolhi para ser meu” (Is 44.1-2).
Um povo obstinado
Por colecionarem mais derrotas do que vitórias, por terem caído em pecado, por
terem desobedecido, por terem voltado aos ídolos pagãos, por terem abandonado a
Deus inúmeras vezes – os profetas diziam que os israelitas eram um povo
obstinado. Eles deram um trabalho enorme aos profetas, que, repetidas vezes, os
chamavam ao arrependimento. Quando Deus vocacionou Ezequiel para o ministério
de profeta, disse-lhe sem rodeio: “Homem mortal, eu o estou mandando ao povo de
Israel, que se revoltou e se virou contra mim. Eles ainda são rebeldes, como os
antepassados deles eram. São teimosos e não me respeitam” (Ez 2.3-4). O profeta
Isaías afirma que eles eram “duros como o ferro ou o bronze” (Is 48.4).
Um povo amado
Mesmo sendo um povo extremamente teimoso, muitas vezes indócil, os israelitas
sempre foram alvo do amor de Deus. A Bíblia registra algumas belas declarações
de amor de Deus a Israel. Uma delas está em Jeremias: “Está chegando o tempo em
que eu serei o Deus de todas as tribos de Israel, e elas serão o meu povo. No
deserto, tive pena daqueles que haviam escapado da morte. Quando o povo de
Israel procurava descanso, eu, vindo de longe, apareci a eles. Povo de Israel,
eu sempre os amei e continuo a mostrar que o meu amor por vocês é eterno. Eu
construirei de novo a nação. Mais uma vez, vocês pegarão os seus tamborins e
dançarão de alegria” (Jr 31.1-4). Outra declaração, talvez ainda mais tocante,
está em Oseias: “Quando Israel era criança, eu já o amava e chamei o meu filho,
que estava na terra do Egito. Porém, quanto mais eu o chamava, mais ele se
afastava de mim. O meu povo ofereceu sacrifícios ao deus Baal e queimou incenso
em honra dos ídolos. Mas fui eu que ensinei o meu povo a andar; eu os segurei
nos meus braços, porém eles não sabiam que era eu que cuidava deles. Com laços
de amor e carinho, eu os trouxe para perto de mim; eu os segurei nos braços
como quem pega uma criança no colo. Eu me inclinei e lhes dei de comer” (Os
11.1-4).
Um povo monoteísta
Certamente o pai da nação de Israel ainda conservava na mente e no coração a
herança monoteísta das primeiras gerações adâmicas. Para ele, havia um só Deus,
criador dos céus, da terra e da raça humana, como está registrado no primeiro
capítulo da Escritura Sagrada (Gn 1.1-31). A evidência disso é que, quando Deus
chama Abrão, diz a ele para deixar para trás apenas sua terra, seus parentes e
a casa de seu pai (Gn 12.1). Não acrescentou “deixe também seus deuses”. Mas
Jacó, seu neto, foi obrigado a reunir a família e ordenar: “Joguem fora todas
as imagens dos deuses estrangeiros que vocês têm” (Gn 35.2).
Mais de quatrocentos anos depois, quando os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó
já eram bem numerosos e estavam de saída do Egito a caminho de Canaã, na longa
parada junto ao monte Sinai, Deus lhes deu o Decálogo. E o primeiro dos Dez
Mandamentos é: “Não tenham outros deuses além de mim” (Êx 20.3).
Era quase impossível ter um só Deus no mundo antigo. A oferta e a variedade de
deuses de ambos os sexos eram enormes. Os povos no meio dos quais Israel viveu
na Mesopotâmia, na Palestina, no Egito e nos países para os quais eram de vez
em quando deportados não tinham a menor noção de monoteísmo. Todos serviam a
uma multidão de deuses, aos quais prestavam culto, oravam, ofereciam
sacrifícios, consagravam sacerdotes e sacerdotisas e construíam templos. Eles
pecavam não por ausência de fé religiosa, mas pela adoração a deuses criados
pela imaginação humana, tão corruptos e mortais como eles mesmos.
A cultura religiosa de Israel era obrigada a chamar esses deuses de deuses
novos, deuses alheios, deuses outros, deuses estranhos, deuses estrangeiros,
deuses falsos (de mentira). Vez e outra, pessoas de fora da comunidade
israelita convenciam-se da unicidade do Deus de Israel e faziam belas
confissões de fé. Jetro, o sacerdote de Midiã e sogro de Moisés, por exemplo,
declarou: “Agora sei que o Senhor é mais poderoso do que todos os deuses” (Êx 18.11).
Muitos anos depois, Nabucodonosor, o poderoso rei da Babilônia, confessou ao
profeta Daniel: “Seu Deus realmente é o Deus de todos os deuses, o Senhor de
todos os reis” (Dn 2.47).
O povo de Israel era monoteísta por formação e continuava monoteísta graças à
intervenção de Deus por meio de seus profetas. Em épocas de acentuado declínio
de fé e conduta, o povo chegava a ter tantos deuses quantas cidades tinham (Jr
2.28). Parece que esse problema desapareceu por completo depois de muito
sofrimento, muita humilhação, muita morte e muita derrota!
Um povo preservado
O povo era deportado para nações distantes, mas ele próprio ou os seus
descendentes retornavam algum tempo depois. As cidades eram destruídas, mas
depois reconstruídas. Na época de Xerxes, rei da Pérsia, havia judeus em todas
as 127 províncias do Império Persa, que se estendiam desde a Índia até a
Etiópia, e todos foram condenados à morte na mesma data (dia 13 do décimo
segundo mês), por força de um decreto assinado pelo rei e levado por mensageiros
aos governadores de todas as províncias.
Seria a eliminação de todo o povo, um genocídio semelhante ao holocausto da
Segunda Guerra Mundial. Como não poderia anular o primeiro decreto, Xerxes
assinou outro decreto, que permitia ao povo se organizar e se defender de
qualquer ataque. O final da história revela que, graças à intervenção do Deus
de Israel por meio da instrumentalidade sábia e corajosa de Ester e de
Mordecai, seu tio, o morticínio não aconteceu. Desde então, ano após ano, os
judeus comemoram a chamada Festa do Purim, que celebra essa grande libertação
(Et 9.20-23).
Em 1939, quando começou a Segunda Guerra Mundial, havia 9,5 milhões de judeus
na Europa. Seis anos depois, no final da guerra (1945), o número baixou para
3,5 milhões, simplesmente porque 6 milhões de judeus haviam sido exterminados
pela Alemanha nazista. Apesar dessa barbárie, dois anos depois, a Organização
das Nações Unidas (ONU) reconheceu ao povo judeu o direito de ter a própria
nação, assegurado no dia 29 de novembro de 1947.
Graças ao rico patrimônio histórico, ao rito da circuncisão, à condenação do
casamento misto, entre outras coisas, e especialmente graças à soberania de
Deus – o povo de Israel é um povo preservado. Mas ainda há algo para acontecer
na história do povo eleito, segundo o eterno propósito de Deus revelado tanto
no Antigo como no Novo Testamento.
O povo de
Israel não é o povo exclusivo de Deus
Deus
não é só de Israel. Ele é o Deus de todas as nações, de todos os povos, de
todas as raças, de todas as etnias, de todas as tribos. Deus é o Deus do
universo. Ele é antes do nada e antes do tempo. Esse Deus nunca toma posse de
coisa alguma nem de poder algum, porque tudo que existe começa com ele e é para
ele.
Chamar Deus de “o maior de todos os deuses” ou “o Deus dos deuses” é uma
injustiça, pois ele é único. Assim diz o Antigo Testamento: “O Senhor, que
criou os céus, é o único Deus” (Is 45.18). Assim diz o Novo Testamento: “Ao Rei
eterno, imortal e invisível, o único Deus – a ele sejam dadas a honra e a glória,
para todo o sempre!” (1Tm 1.17).
Antes de Cristo, o instrumento mais usado por Deus para propagar o seu nome e
os seus feitos foi o povo que ele elegeu em Abraão. Essa propaganda é feita
pelos livros históricos, pelos livros poéticos, pelos livros proféticos, pelos
quatro Evangelhos, pelas cartas pastorais e pelo Apocalipse (os livros da
Bíblia), quase todos escritos por judeus. O nome de Deus apenas não aparece no
livro de Ester, mas a sua soberania e a sua providência estão presentes também
no período histórico compreendido entre 485 e 464 antes de Cristo.
Embora seja o livro de Êxodo o que mais fala sobre os atos portentosos de Deus,
o que mais menciona o nome do Senhor é o livro dos Salmos. A pessoa de Deus é
apresentada de forma amorosa e piedosa, e não simplesmente de maneira formal.
Nos Salmos, o nome de Deus é mencionado não por cientistas da religião nem por
curiosos. Ele está na boca de crentes que adoram, expressam o conhecimento do
caráter, da pessoa e dos feitos de Deus e, por isso, confessam pecados,
derramam a alma, choram as dores, fazem súplicas ardentes, gritam por socorro,
têm comunhão e intimidade com Deus, desnudam-se diante dele, pedem perdão e até
mesmo têm a liberdade para reclamar: “Ó Senhor Deus, até quando esquecerás de
mim? Será para sempre? Por quanto tempo esconderás de mim o teu rosto? Até
quando terei de suportar este sofrimento? Até quando o meu coração se encherá
dia e noite de tristeza? Até quando os meus inimigos me vencerão?” (Sl 13.1-2).
É mais fácil conhecer a Deus devocionalmente nos Salmos do que em qualquer
outro livro da Bíblia. Veja-se o grau de confiança e de intimidade com Deus no
saltério apenas em alguns dos 23 primeiros salmos:
“Eu chamo o Senhor para me ajudar, e lá do seu monte santo ele me responde. Eu
me deito, e durmo tranquilo, e depois acordo porque o Senhor me protege”
(3.4-5).
“Ó Deus, defensor dos meu direitos, responde-me quando eu te chamar! Eu estava
em dificuldade, mas tu me ajudaste” (4.1).
“Meu Rei e meu Deus, atende o meu pedido de ajuda, pois eu oro a ti, ó Senhor.
De manhã ouves a minha voz; quando o sol nasce, eu faço a minha oração e espero
a resposta. Por causa do teu grande amor, eu posso entrar nos pátios da tua
casa e ajoelhar com todo o respeito, voltado para o teu santo Templo” (5.2-3,
7).
“Tem compaixão de mim, pois me sinto fraco. Dá-me saúde, pois o meu corpo está
abatido, e a minha alma está muito aflita. Ó Deus, quando virás me curar?”
(6.2-3).
“As promessas do Senhor merecem confiança; elas são como a prata pura, refinada
sete vezes no fogo” (12.6).
“Ó Senhor, meu Deus, olha para mim e responde-me! Dá-me forças novamente para
que eu não morra. Eu confio no teu amor. O meu coração ficará alegre, pois tu
me salvarás. E, porque tens sido bom para mim, cantarei hinos a ti, ó Senhor”
(13.3, 5-6).
“Tu, ó Senhor Deus, és tudo o que tenho. O meu futuro está nas tuas mãos; tu
diriges a minha vida. Como são boas as bênçãos que me dás! Como são
maravilhosas! Estou certo de que o Senhor está sempre comigo; ele está ao meu
lado direito, e nada me pode abalar. Por isso o meu coração está feliz e
alegre, e eu, um ser mortal, me sinto bem seguro, porque tu, ó Deus, me
proteges do poder da morte. A tua presença me enche de alegria e me traz
felicidade para sempre” (16.5-6, 8-11).
“Ó Senhor Deus, como eu te amo! Tu és a minha força. Estive cercado de perigos
de morte, e ondas de destruição rolaram sobre mim. A morte me amarrou com as
suas cordas, e a sepultura armou a sua armadilha para me pegar. No meu
desespero, eu clamei ao Senhor e pedi que ele me ajudasse. Do seu templo no céu
o Senhor ouviu a minha voz, ele escutou o meu grito de socorro” (18.1, 4-6).
“O Senhor é o meu pastor: nada me faltará. Ele me faz descansar em pastos
verdes e me leva a águas tranquilas. Ainda que eu ande por um vale escuro como
a morte, não terei medo de nada. Pois, tu, ó Senhor Deus, estás comigo; tu me
proteges e me diriges” (23.1-2, 4).
Por causa dessa contínua e profunda abertura da alma diante de Deus da parte de
Davi e de outros salmistas, o livro dos Salmos é o mais querido e o que tem
mais leitores. Atanásio dizia que ele é “um resumo da Bíblia”, enquanto Lutero
chamava-o de “uma minibíblia e o sumário do Antigo Testamento”. Melâncton chega
a declarar que os Salmos são “a mais elegante obra existente no mundo”. O mais
extenso comentário de Calvino foi o do livro dos Salmos (quatro volumes com
2.578 páginas na edição brasileira), que ele denominava de “uma anatomia de
todas as partes da alma”.
Quando a experiência religiosa se associa com a teologia, a mente e o coração
se encontram, a certeza e a emoção se misturam e a teoria e a vivência se unem!
FONTE REV.ULTIMATO