Irineu de Lião ataca o gnosticismo
Creio ser muito importante
conhecer a vida e a luta dos grandes homens e mulheres que Deus levantou ao
longo da História, para que o evangelho permanecesse puro e imune aos modismos
e heresias que surgiram com o passar dos tempos. Um dos grandes Pais da Igreja
se chamava Irineu, e todo cristão tem o direito (um privilégio, mais que um
dever) de conhecer a sua vida e a sua obra.
Irineu nasceu em Esmirna, ou
perto dali, por volta de 120 d.C. Na juventude, foi discípulo do grande bispo
Policarpo de Esmirna, com quem aprendeu os ensinamentos do apóstolo João, de
quem Policarpo havia aprendido diretamente o evangelho. Por volta do ano 150,
Irineu foi enviado à outra extremidade do Império Romano, na Gália (hoje
França), onde estabeleceu-se em Lião (Lyon), sendo inicialmente presbítero e
depois bispo da igreja cristã. Em seu livro "Contra as Heresias",
atacou a heresia gnóstica e passou à história como Irineu de Lião, o grande
bispo defensor da ortodoxia cristã.
Transcrevo abaixo alguns trechos do livro "História da Teologia Cristã",
de Roger Olson, Ed. Vida, págs. 69/74, sobre as idéias centrais de Irineu ao
atacar o gnosticismo. O texto é longo, mas vale a pena ser lido:
O ataque de Irineu ao gnosticismo não teve nada da abordagem fria
e racional que as pessoas da atualidade esperariam de um bispo ou teólogo. Ele
considerava o gnosticismo estulto e sinistro e queria desmascará-lo de uma vez
por todas como uma corrupção completa do evangelho disfarçado em
"sabedoria superior para pessoas espirituais". Para tanto, Irineu
passou meses e anos estudando pelo menos vinte mestres gnósticos distintos e
suas respectivas escolas. Descobriu que o mais influente era o gnosticismo
valentiniano, que se tornou popular entre os cristãos de Roma mediante os
ensinos de um líder gnóstico chamado Ptolomeu. Por isso, concentrou sua atenção
em expor esse grupo como ridículo e falso na esperança de que todos os outros
fossem esmagados com o peso dessa queda.
A abordagem de Irineu na crítica ao gnosticismo em "Contra as
Heresias" foi tripla. Em primeiro lugar, procurou reduzir ao absurdo a
cosmovisão gnóstica, ao demonstrar que boa parte dela era uma mitologia sem
qualquer fundamento a não ser a imaginação. Essa primeira estratégia pretendia
desmascarar as contradições internas do gnosticismo e sua incoerência básica.
As verdades que pregava eram conflitantes entre si. Em segundo lugar, tentou
demonstrar que a reivindicação dos gnósticos de ter uma autoridade que
remontava a Jesus e aos apóstolos era simplesmente falsa. Finalmente, entrou em
debate com a interpretação gnóstica das Escrituras e demonstrou que era
irracional e até mesmo impossível. Há várias suposições que explicam a polêmica
tentativa de Irineu de desmascarar o gnosticismo. Obviamente, ele acreditava
que exercia um papel e uma posição especiais, por ter sido instruído no
cristianismo por Policarpo que, por sua vez, teve João como mestre. Muitos
gnósticos alegavam que João fazia parte de um grupo seleto de discípulos de
Jesus que receberam do Salvador "ensinos secretos" não revelados à
maioria dos cristãos por não estarem espiritualmente aptos a entendê-los.
Embora pudessem enxergar indícios da própria cosmovisão e evangelho nos
escritos apostólicos, tinham que confiar em uma tradição oral secreta como a
fonte principal de sua autoridade. Irineu deduziu que, se tivessem existido
tais ensinos, Policarpo teria tomado conhecimento deles e lhe contado. O fato
de nenhum dos bispos dos cristãos reconhecerem nem aceitarem esses ensinos
acabou com as reivindicações dos gnósticos.
Outra suposição básica que subjazia à crítica ao gnosticismo era a
de que os gnósticos seriam os responsáveis por romper a unidade da Igreja. Eram
eles os cismáticos. Irineu atribuía grande valor à unidade visível da igreja,
que consistia na comunhão dos bispos nomeados pelos apóstolos. Os gnósticos
estavam fora dela e agiam como parasitas. Para Irineu e muitos dos seus
leitores, esse era um argumento forte contra eles.
...
Todas as principais seitas e escolas do gnosticismo desprezavam a
criação física e negavam sua origem no Deus supremo da bondade e da luz. A
maioria, incluindo-se a escola de Valentino, apresentava níveis de emanações
("éons"
e "arcontes"
)do Deus de puro espírito e luz que gradualmente se desviavam e, de alguma
forma, acabavam criando o universo material, inclusive os corpos humanos nos
quais as centelhas do divino (almas, espíritos) se encontram enredadas e
presas. Para rebater essa teoria da criação, Irineu afirmou a doutrina cristã
de Deus como criador e redentor da existência material e da espiritual. Contra
os gnósticos, citou João 1:3 e outras passagens do AT e dos apóstolos (que
posteriormente seriam incluídos no NT) que tratam de Deus como o criador de
todas as coisas mediante o seu Verbo e o seu Espírito e desacreditou as
interpretações que fizeram das referências bíblicas aos anjos, aos poderes
espirituais e aos principados, atribuindo-lhes um caráter fantasioso e absurdo.
...
Os gnósticos pensavam na obra de Cristo sob um prisma puramente
espiritual e negavam a encarnação. Para eles, Cristo, o redentor celestial,
nunca teve uma existência em um corpo humano. Ele veio pelos níveis dos
"éons" e "arcontes" e apareceu na forma humana sem assumir
a natureza física ou entrou no corpo de um ser humano chamado Jesus de Nazaré a
fim de usá-lo como instrumento para falar a respeito da origem espiritual da
alma humana. Em qualquer dessas versões da cristologia gnóstica, a obra de
Cristo não requeria a encarnação. Sua missão era simplesmente revelar uma
mensagem aos espíritos. A dimensão material e física não se relacionava com
isso e, quando Jesus foi crucificado, Cristo não estava nele, nem com ele. Os
gnósticos excluíam da sua soteriologia (doutrina da salvação) a vida e a morte
histórica e física de Jesus.
Irineu procurou demonstrar que o evangelho da salvação ensinado
pelos apóstolos e transmitido por eles centralizava-se na encarnação, a
existência humana do Verbo, o Filho de Deus, em carne e osso. Por isso,
enfatizava todos os aspectos da vida de Jesus como necessários para a salvação.
A obra de Cristo em nosso favor foi muito além de seus ensinamentos e
estendeu-se à própria encarnação. Para Irineu (e para a maioria dos pais da
igreja depois dele) a própria encarnação é redentora e não meramente um passo
necessário em direção aos ensinos de Cristo ou ao evento da cruz. Pelo
contrário, a humanização do Filho de Deus - o Verbo (Logos) eterno de Deus
experimentando a existência humana - é o que redime e restaura a humanidade
caída se ela se permitir. Essa idéia ficou conhecida como a encarnação
salvífica e foi crucial para o curso de toda a teologia depois de Irineu. É por
isso que, sempre que surgia uma teologia que de alguma forma ameaçava a
encarnação de Deus em Jesus, os pais da igreja reagiam tão fortemente. Qualquer
ameaça à encarnação, por menor que fosse, era vista como uma ameaça à salvação.
Se Jesus Cristo não fosse verdadeiramente humano bem como verdadeiramente
divino, a salvação seria incompleta e impossível. A redenção, na sua inteireza,
repousa na realidade do nascimento de Cristo em carne e osso, de sua vida, seu
sofrimento e sua ressurreição, além do seu eterno poder e divindade.
...
Os gnósticos não ofereceram esperança alguma para a raça humana
como um todo e nem para os seres humanos individualmente. Somente os espíritos
- e assim mesmo, poucos - tinham alguma esperança de serem transformados e
somente mediante agnosis (conhecimento). Irineu
implantou profundamente na consciência cristã a crença e esperança em Jesus
Cristo como transformador de toda a raça humana mediante sua fusão com a
humanidade na encarnação.
FONTE REV.ULTIMATO
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