História e Cristianismo em J. Gresham Machen – sobre o liberalismo e fundamentalismo
O Fundamentalismo foi um movimento marcante de reação à entrada do Liberalismo Teológico nos arraiais das igrejas protestantes americanas no início do século XX. O termo “Fundamentalismo” é uma referência direta à obra de doze volumes intitulada The Fundamentals lançada em 1910. Seu conteúdo professou guerra aberta contra o ateísmo, o catolicismo, o socialismo, a filosofia moderna, o mormonismo, o espiritismo e muitos grupos semelhantes, mas principalmente, a Teologia Liberal “que se baseava numa interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e o darwinismo, que pareciam subverter a autoridade da Bíblia” (MCINTIRE em ELWELL, 1992, v.2, p. 187).
Duas informações nos fornecem uma noção do impacto da obra: 1) O número de exemplares: Foram três milhões de cópias distribuídas gratuitamente por todo território americano. 2) As denominações incluídas: A obra teve a co-autoria de presbiterianos, batistas e anglicanos de vários lugares como Inglaterra, Escócia, Canadá e EUA.
Há historiadores como Roger E. Olson que dividem o fundamentalismo em duas fases: moderada e extremista (cf. OLSON, 2001, p. 576-84). Para ele, Machen e The Fundamentals fazem parte dessa primeira fase moderada. Mcintire divide a história do fundamentalismo em quatro fases (cf. MCINTIRE, 1992, p. 187-90).
Em sua primeira das quatro fases, o Fundamentalismo lutava pelos elementos fundamentais da fé cristã. Entretanto, não demorou muito e “a lista dos inimigos tornou-se mais estreita e os fundamentos, menos abrangentes” (MCINTIRE, 1992, p. 187) desviando o movimento do seu foco inicial. É na primeira fase, nesse cenário turbulento de luta direta contra o Liberalismo, que surge a figura de J. Gresham Machen.
Machen está ligado (como um protagonista de valor) a quase todas as obras literárias quando a matéria é a controvérsia Fundamentalismo-Liberalismo (cf. PIERARD em ELWELL, 1992, p. 424-29; CAIRNS, 1995, p. 420-33; HART, 1993; DOLLAR, 1962; NOLL et. al, 1983, p. 378-82; MCINTIRE, 1992). Apesar de não apreciar a denominação “fundamentalista”, Machen e o Fundamentalismo (da primeira fase) tinham um inimigo comum – o Liberalismo. Nas palavras do próprio Machen: “Na presença de um grande inimigo comum, eu tenho pouco tempo para atacar meus irmãos [fundamentalistas] que permanecem comigo na defesa da Palavra de Deus” (STONEHOUSE, 1954, p. 337-8). Ele acreditava viver em tempos de conflito. Em suas palavras, “O presente não é tempo para tranquilidade ou prazer, mas para seriedade e obra súplice” (MACHEN, 2001, p. 172).
Para muitos, Machen foi o principal teólogo do movimento (OLSON, 2001, p. 557). A explicação para tamanha reputação se encontra em sua erudição, mas principalmente por sua obra Cristianismo e Liberalismo onde se propõe demonstrar que o “Liberalismo moderno […] não é cristão” (MACHEN, 2001, p. 18).
Por sua erudição, por seus feitos numa época marcante para o protestantismo, pelo impacto e, principalmente pela natureza holística de sua obra, justifica-se uma análise cuidadosa de sua vida e obra. Todavia, devido às limitações de espaço, nos deteremos a um aspecto marcante de seu material apologético: O assentimento da historicidade dos eventos bíblicos como fator indicador da autêntica ortodoxia cristã.
O artigo que segue trará uma breve biografia de Machen seguida de uma análise de sua magnum opus (Cristianismo e Liberalismo); em seguida exporá a importância da história no cristianismo tendo o Liberalismo e a Neo-ortodoxia (dois fenômenos confrontados por Machen) como contraponto. Por fim, uma palavra sobre a perspectiva de Machen quanto à crítica histórica.
2 UMA BREVE BIOGRAFIA (cf. STONEHOUSE, 1954; NICHOLS, 2004; KELLY, Em ELWELL, v. 2, p. 463-4. MACHEN, 2001, p. i-iv).
Nascido em Baltimore em 28 de julho de 1881, John Gresham Machen era parte de uma família presbiteriana próspera, tanto financeira quanto culturalmente. Seus pais, Arthur W. Machen e Mary G. Machen o introduziram em um estilo de vida que combinava piedade e intelectualidade. Machen sempre foi encorajado a buscar o melhor da educação. Por exemplo, logo cedo foi acostumado a falar francês em casa. Sobre sua erudição e embates com os liberais, Olson diz que “Seus oponentes teológicos liberais não conseguiram encontrar nenhuma falha em sua erudição e nem demiti-lo taxando-o de obscurantista demente, como costumava fazer com outros fundamentalistas” (OLSON, 2001, p. 577).
Formou-se com honras (primeiro da turma) na Universidade de Johns Hopkins em 1901, e logo após estudou um ano com o famoso estudioso do grego bíblico B. L. Gildersleeve (na época, presbítero de sua igreja). Em 1902 se matriculou em Princeton. Em 1905 concluiu sua graduação. Lá, estudou com homens como B. B. Warfield e Greahardus Vos. Após a conclusão dos seus estudos em Princeton (1905), foi convidado por Francis L. Patton e William P. Armstrong a ser instrutor de grego bíblico. Porém, preferiu ir a Alemanha estudar em Marburg e Göttingen. Lá estudou um semestre em cada instituição. Teve como um de seus mestres o famoso liberal Wilhem Herrmann. A despeito da extraordinária influência de Wilhem Herrmann e da crise teológica decorrente dessa, Machen, com ajuda de B. B. Warfield, Patton e Armstrong, persistiu numa visão conservadora quanto às Escrituras.
De volta ao território americano, aceitou o convite de ensinar grego bíblico em Princeton. Na época, o livro texto era Essentials of New Testament Greek de Huddlestone. Por considerá-lo “pobre e escasso”, Machen o complementou com exercícios extras produzidos por ele mesmo. Em 1923, suas notas de aula se converteram em New Testament Greek for Beginners. Sem dúvida, uma obra marcante para todos os estudantes iniciantes de grego do Novo Testamento do século XX.
Em 1920 Machen teve sua primeira participação controversa em sua denominação. Valdeci da Silva Santos nos explica:
Naquela ocasião [Assembléia Geral], os delegados da reunião deveriam votar o Plano Filadélfia, que previa a coalizão de dezenove pequenas denominações presbiterianas em uma única denominação nacional. […] contrariando os colegas de cátedra [Joseph Ross Steveson e Charles Eerdman], Machen se opôs ao plano, por entender que ele pretendia uma reunião jurídica e uma pluralidade teológica indesejável (SANTOS, 2004, p. 152).
Em 1923 Cristianismo e Liberalismo, um marco para o fundamentalismo, foi lançado confrontando não somente o Liberalismo como todos os que o toleravam. A obra evidenciou ainda mais as diferenças entre liberais e ortodoxos que, até então, ainda coexistiam nas mesmas denominações e instituições de ensino. Algumas das novas denominações criadas a partir de 1930 foram: Igrejas Fundamentalistas Independentes dos Estados Unidos (1930); Associação das Igrejas Batistas Regulares (1932); Igreja Presbiteriana Ortodoxa (1936); Igreja Presbiteriana Bíblica (1938) e Associação Batista Conservadora dos Estados Unidos (1947).
Com a persistência da Presbyterian Church in the U.S.A. (doravante, PCUSA) e Princeton em tratar as diferenças nas instituições como questões meramente administrativas e não doutrinárias, Machen, após muitas lutas, deixa Princeton em 1929 para fundar no dia 25 de setembro do mesmo ano o Seminário Teológico de Westminster. Depois da derrota no tocante a Princeton, Machen perdeu a luta com respeito à Junta de Missões Estrangeiras. Foram várias as acusações feitas ao Teólogo de Princeton. Dentre elas: falta de zelo e fidelidade em manter a paz na igreja (MACHEN, 2001, p. iii). No dia 29 de março de 1935 foi suspenso do ministério da PCUSA. Em 1936, junto com outros cinco mil conservadores fundou a Igreja Presbiteriana da América, que posteriormente foi denominada Igreja Presbiteriana Ortodoxa (OPC).
Resistindo aos conselhos de amigos, Machen foi para o Estado de Dakota do Norte em resposta a um convite para pregar. No decorrer da viagem contraiu pneumonia e no primeiro dia de 1937 veio a falecer com apenas 55 anos de idade. Como Calvino e outros grandes homens que representam uma era, Machen teve um fim prematuro. Suas últimas palavras foram: “Sou grato pela obediência ativa de Cristo sem a qual não há esperança” (MACHEN, 2001, p. iv).
3 CRISTIANISMO E LIBERALISMO, SUA MAGNUM OPUS
A produção literária de Machen é extensa; inclui artigos, pregações e livros. De todas elas, Cristianismo e Liberalismo é, sem dúvidas, a mais emblemática. Stonehouse, um dos grandes biógrafos de Machen, dedica um capítulo inteiro sobre a obra (STONEHOUSE, 1954, p. 336-50). Aqui queremos alistar duas possíveis razões para sua proeminência: 1) A repercussão e 2) Seu conteúdo holístico.
3.1 A Repercussão.
Nenhum livro faz sucesso somente devido ao seu conteúdo. É na sintonia entre conteúdo e o “espírito de mundo” (zeitgeist) e/ou contexto histórico que encontramos a fórmula do sucesso. Faz-se, pois, necessário uma palavra sobre o contexto histórico de Cristianismo e Liberalismo.
Segundo Stephen J. Nichols: “O contexto imediato de Cristianismo e Liberalismo é o sermão pregado por Harry Emerson Fosdick no dia 21 de maio de 1922 cujo título era ‘O Fundamentalismo ganhará?” (NICHOLS, 2004, p. 82). Stonehouse corrobora as palavras de Nichols ao afirmar que a aceitação de Macmillan se deu porque foi “influenciada pela atenção que tinha sido atraída para Fosdick, a grande controvérsia, e a força do movimento de reafirmação dos fundamentos” (HART, 1995, 341).
Fosdick “foi um dos clérigos mais influentes da primeira metade do século XX” (LINDER em ELWELL, 1991, v.2, p. 183) bem como um dos maiores “popularizadores do liberalismo teológico moderno” (LINDER, 1991, p. 183). Por seu empenho em defesa do Liberalismo, foi denominado pelos conservadores de “Moisés do modernismo” e “Jesse James do mundo teológico”.
A influência de Fosdick e sua pregação explícita contra o fundamentalismo explicam a aceleração da publicação de Cristianismo e Liberalismo. Era preciso uma resposta rápida e à altura. E Macmillan encontrou um excelente representante do lado conservador da controvérsia. A editora recebeu o livro no início de dezembro de 1922 e dois meses depois foi publicado. Segundo Stonehouse, “durante do resto do ano um pouco menos que mil cópias foram vendidas, mas em 1924, quando o livro tornou-se popular e a controvérsia [fundamentalismo-modernismo] tornou-se mais intensa, a venda total aproximou-se das cinco mil cópias” (STONEHOUSE, 1954, p. 341).
O sucesso de vendas não é a única amostra de sua importância e/ou proeminência em relação às suas outras obras. Foram várias as recomendações feitas por especialista. Mas ficaremos com a mais simbólica; as palavras de comentarista secular Walter Lippmann:
É um livro admirável. Por sua perspicácia, por sua importância, e por seu tino, esta fria e rigorosa defesa do protestantismo ortodoxo é, penso, o melhor argumento popular produzido pelo outro lado da controvérsia. Faremos bem ouvir o Dr. Machen. Os liberais ainda têm que respondê-lo (NICHOLS, 2004, p. 82).
3.2 O Conteúdo Holístico
Como o próprio título revela, a obra lida com uma situação histórica específica: A distinção entre Liberalismo (modernismo) e Cristianismo torna o primeiro uma ameaça a ser condenada, justificando-se, pois, uma luta aberta contra o mesmo.
Machen lida, pois, com condições peculiares dos seus dias; como por exemplo, a aceitação de liberais em instituições cristãs; a desonestidade desses na manutenção de expressões ortodoxas, porém, redefinidas, bem como no uso dos recursos de instituições confessionais. O uso constante da expressão “situação presente”, “presente controvérsia”, “no presente”, “o presente”, “medidas necessárias hoje” (MACHEN, 2001, p. 163, 166, 169, 170, 172) reforça sua preocupação com uma situação histórica particular. Em alguns casos, Machen usa o termo “igreja” pressupondo tratar-se da “Igreja Presbiteriana”. Alguns dos conselhos do último capítulo só poderiam ser aplicados ao governo de igreja por ele defendido (presbiteriano), revelando assim, a aplicabilidade restrita da obra.
Apesar de sua natureza particular, em Cristianismo e Liberalismo Machen não nos proporciona somente um manual peculiar aos presbiterianos contra o Liberalismo Teológico do início do século XX, tornando-se uma obra “presa” a um contexto histórico particular. Antes, por tratar com os elementos essenciais do cristianismo, ou seja, as doutrinas inegociáveis que fazem do cristianismo, cristianismo, Machen, legou à Igreja as colunas doutrinárias do cristianismo.
Cristianismo e Liberalismo não somente nos ajuda a entender a como lidar com o Liberalismo; ele nos apresenta o que realmente é o cristianismo. Embora a obra tenha um caráter apologético, é uma obra mais positiva que negativa, por que enquanto combate o Liberalismo (natureza negativa), Machen nos ensina o que é Cristianismo (natureza positiva). “A resposta de Machen vai além da sua situação contemporânea e fala de questões de importância atemporal” (MACHEN, 2001, p. 83).
O caráter holístico da obra também é revelado em sua metodologia. Machen analisa o sistema a partir de seus fundamentos e/ou pressupostos. Sua crítica capital ao Liberalismo é que ele “[…] procede de uma raiz completamente diferente”, ou “bases da fé” (MACHEN, 2001, p. 172) opostas. Aqui Machen nos alerta para o fato de que é exatamente nos fundamentos que se trava a verdadeira batalha pela fé. Toda teologia é construída a partir de pressuposto e/ou fundamentos; e é ai que as batalhas devem ser travadas.
A declaração que segue revela a consciência de Machen do caráter atemporal de sua defesa do cristianismo: “a investigação com a qual estamos agora preocupados é sem dúvida a mais importante de todas aquelas com as quais a igreja deve lidar” (MACHEN, 2001, p. 19).
Por sua natureza holística, Cristianismo e Liberalismo ajuda-nos a julgar e/ou entender assuntos outros como espiritualidade, exclusivismo, ecumenismo, milagres, crítica bíblica, apologética, linguagem religiosa, amor, justiça, salvação, pragmatismo, a natureza da fé etc. Sua metodologia de abordagem ao Liberalismo pode ser usada para avaliação de qualquer fenômeno religioso. Ela pode ser usada contra o subjetivismo do misticismo bem como a secura anti-sobrenatural do cristicismo histórico que negava os eventos mais importantes do cristianismo (morte e ressurreição de Cristo). Sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.
4. CRISTIANISMO E HISTÓRIA
O tema “história” é uma constante na vida e obra de J. Gresham Machen. Ele aparece cedo nos escritos do teólogo de Pricenton. Permeia toda sua monografia de graduação sobre o nascimento virginal de Cristo e é tônica do seu sermão de ordenação cujo título era História e Fé: Um Evangelho despido da história é simplesmente uma contradição de termos (MACHEN, 2001, p.i.). A temática é reiterada várias vezes ao longo de sua produção literária.
4.1 O Liberalismo e a História
Sua preocupação com a história tinha uma explicação: A separação entre cristianismo e história era, para Machen, o grande interesse da teologia moderna (MACHEN, 1951, p. 170). Em suas palavras:
Em uma época como esta, é óbvio que cada herança do passado deve ser objeto de uma crítica aguda; […] a dependência de qualquer instituição do passado é agora, às vezes, até mesmo considerada como fornecedora de uma presunção não em função da mesma, mas contra. […] Se tal atitude for justificável, então nenhuma instituição é encarada com uma presunção hostil mais forte do que a instituição da religião cristã, visto que nenhuma outra instituição tem se baseado com mais honestidade na autoridade de uma era passada do que ela (MACHEN, 2001, p. 15).
Ele entendeu como poucos que quando o assunto é teologia moderna, uma das questões cruciais era o lugar da história no Evangelho cristão (HART, 1995, p. 344). Para Machen “O cristianismo […] é dependente da história” (MACHEN, 2001, p. 122). E ainda: “um evangelho independente da história é uma contradição de termos” (MACHEN, 2001, p. 122). Para ele:
O estudante do Novo Testamento deve ser primariamente um historiador. O centro e o cerne de toda a Bíblia é história. Tudo que está na Bíblia está ligado a um arcabouço histórico e nos conduz a um clímax histórico. A Bíblia é primariamente um livro histórico (MACHEN, 1951, p. 170).
A hermenêutica moderna foi alvo das críticas de Machen, pois não permitia se lê um evento sobrenatural como histórico. Machen detecta esse pressuposto ao afirmar que “a raiz do movimento [liberal] é uma; as variedades da religião liberal moderna são arraigadas no naturalismo – isto é, na negação de qualquer entrada do poder criativo de Deus” (MACHEN, 2001, p. 14). De encontro ao naturalismo Machen assegura que:
O Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa histórica – isto é admitido por todos os que têm se confrontado com os problema [sic] históricos. Mas, o Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa sobrenatural. Porém, para o liberalismo moderno, uma pessoa sobrenatural nunca é histórica (MACHEN, 2001, p. 108).
De Ritschl e Kant o Liberalismo herdou a idéia de que a mensagem religiosa se reduz à ética. Essa redução do cristianismo tinha uma relação direta com a desvalorização de sua historicidade. Vindo em uma corrente oposta, Machen afirma que a ética cristã (imperativo) está atrelada e/ou é decorrente do indicativo histórico da morte e ressurreição de Cristo. Em suas próprias palavras:
O pregador liberal está realmente rejeitando toda a base do Cristianismo, que não é uma religião edificada sobre aspirações, mas em fatos. Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o Cristianismo – o liberalismo está, no geral, no modo imperativo, enquanto o cristianismo começa com um indicativo triunfante […] (MACHEN, 2001, p. 53).
Ainda pensando na relação entre ética e cristianismo, Machen argumenta que há fatos que se impõem em nossa vida. São eles: sofrimento, morte, culpa e pecado. A esses fatos, afirma Machen, “o pregador moderno responde – com exortação” (MACHEN, 1951, p. 171). A essa postura Machen contrapõe:
Muito eloqüente, meu amigo! Mas que pena! Você não pode mudar os fatos. O pregador moderno oferece reflexão. A Bíblia oferece mais. A Bíblia oferece notícias – não reflexão sobre o antigo, mas notícias de algo novo; não algo que pode ser deduzido ou descoberto, mas algo que aconteceu; não filosofia, mas história; não exortação, mas o Evangelho (MACHEN, 1951, p. 171).
No primeiro capítulo de sua magnum opus, Machen argumenta que a essência do cristianismo é doutrina. Uma clara rejeição do conceito sentimental e/ou experimental de religião defendido pelos liberais e herdado de Schleiermacher. Sobre a relação história e doutrina Machen afirma:
Desde o início, o evangelho cristão, como de fato o nome “evangelho” ou “boas novas” infere, consistia de relato de algo que havia acontecido. […] “Cristo Morreu” – isto é história; ‘Cristo morreu pelos nossos pecados – isto é doutrina. Sem estes dois elementos, conjugados em união absolutamente indissolúvel, não há Cristianismo.” (MACHEN, 1951, p. 35)
E mais:
O mundo deveria ser redimido através da proclamação de um evento. E com o evento estava o seu significado; e a apresentação do evento com seu significado é doutrina. Estes dois elementos estão sempre combinados na mensagem cristã. A narração dos fatos é história; a narração dos fatos com significado dos mesmos é doutrina (MACHEN, 1951, p 37).
Em suma, para Machen, no cristianismo, o sobrenatural, a ética, a doutrina e a história estão essencialmente conectadas. Nas palavras de Machen, trata-se de uma “união indissolúvel”. O abandono da história pode até manter a crença “filosófica” em Deus com seus corolários éticos. Porém, afirma Machen, o abandono da história, “nunca pode preservar o Evangelho, pois ‘evangelho’ significa ‘boas novas’” (MACHEN, 2004, p. 98).
4.2 A Neo-ortodoxia e a História
No dia 2 dezembro de 1929, A Savage of Scribner´s Publishing House enviou para Machen uma cópia da obra de Emil Brunner intitulada The Theology of Crisis. O objetivo da editora era uma recomendação e/ou conselho de um representante da ala conservadora (HART, 1991, p. 189). A resposta de Machen a Scribner “tornou-se sua resposta típica quando o assunto era neo-ortodoxia; disse que não entendia a teologia da crise como um retorno ao cristianismo evangélico, mas seu conhecimento limitado o impedia de um julgamento final” (HART, 1991, p. 189).
Um ano antes, em um artigo escrito em 23 de abril para um pequeno grupo de ministros, Machen demonstra muito cuidado em tomar uma posição para o movimento que estava surgindo – a teologia da crise. Em várias partes do documento Machen revela suas limitações. Ele diz que tem “poucas palavras” (MACHEN, 1991, p. 197) e que tem dificuldade de “explicar o que não entende” (MACHEN, 1991, p. 200).
Para Machen, em alguns assuntos como: o homem perdido no pecado e a graça de Deus como um dom de Jesus Cristo seu filho, a teologia da crise “soa como John Bunyan, João Calvino, o Catecismo Menor e a Fé Reformada” (MACHEN, 1991, p. 200). No entanto, apesar de todo cuidado para com assuntos não completamente compreendidos, Machen é firme em declarar que:
Eles [Barth, Brunner e seus associados] diferem, eu penso (se pudermos ignorar detalhes e irmos imediatamente ao centro das coisas) – eles diferem na sua epistemologia, diferem em sua atitude para com simples informação histórica que a Bíblia contém (MACHEN, 1991, p. 201).
Para Machen, Barth “tenta fazer a fé cristã independente das descobertas da história científica quanto a vida de Cristo” (MACHEN, 1991, p. 203). E ainda, “A atitude de Barth e seus associados no tocante ao criticismo histórico constitui uma fraqueza mortal da escola” (MACHEN, 1991, p. 204).
A despeito de sua reconhecida limitação julgamento, o grande incômodo para Machen está na estranha indiferença de Barth a questões de criticismo literário e histórico no tocante a Jesus Cristo. Essa indiferença era tamanha que até mesmo Bultmanm, com seu ceticismo extremo na esfera histórica, pode aparentemente ser considerado um membro da escola barthiana uma vez que era um dos contribuidores do jornal Zwischen den Zeiten (MACHEN, 1991, p. 204).
“A reação inicial de Machen ao barthianismo sugere que ele considerou a neortodoxia, em suas variações tanto na América quanto na Europa, como uma extensão do Liberalismo protestante ao invés de um repúdio” (HART, 1991, p. 193). Ambas as escolas tinham problemas quanto à historicidade do cristianismo. Na primeira, a negação do sobrenatural não permitia uma “leitura completa” do registro dos Evangelhos fragmentando-os na busca do Jesus histórico. Na segunda, as doutrinas basilares como Trindade, fé, pecado e redenção em Jesus eram fruto de uma leitura descompromissada e indiferente da história. Na primeira, o Evangelho era julgado pela crítica história naturalista; na segunda, a história era desvalorizada pelo subjetivismo decorrente do seu conceito deturpado de revelação. Ambas eram ameaças ao verdadeiro cristianismo, pois tinham negligenciado um elemento essencial – sua historicidade.
5 O CRITICISMO HISTÓRICO
Segundo Eta Linnemann, “Para a teologia histórico-crítica, a razão crítica decide o que é e o que não pode ser realidade na bíblia; e essa decisão é feita na base da experiência diária acessível a cada pessoa” (LINNEMANN, 2009, 101-102). Em outras palavras, “Aquilo que é espiritual é julgado segundo critérios da carne” (LINNEMANN, 2009, p. 102). Certamente partindo desse pressuposto, nunca chegaremos a conclusões de cunho sobrenatural. Pois, como bem colocou Augustus Nicodemus: “É sabido e reconhecido, nas mais diversas áreas do conhecimento, que a escolha de um método já determina, por antecipação, a extensão e o tipo de resultados da pesquisa” (LOPES, 2005, p. 136).
A despeito de seus pressupostos e métodos, para Machen “Não podemos, […], ser indiferentes ao criticismo bíblico” (MACHEN, 1951, p. 183-184). Ele entendia que a rejeição do caráter histórico das Escrituras era uma ameaça a igreja uma vez que a Escritura é o fundamento desta. “Machen não apenas censura as críticas liberais, mas também o que ele considerou a piedade convencional e descuidada do protestantismo” (HART, 1995, p. 37). Apelar para o sobrenatural não era o único caminho. Nas palavras de Hart:
Embora [Machen] cresse que a origem do cristianismo era sobrenatural e que a visão de Paulo é mais bem entendida com uma reflexão dessa realidade, Machen não se satisfazia com a história providencial para explicar a origem do movimento cristão (HART, 1995, p. 50).
“Ao invés de evitar os métodos e achados da alta crítica, como muitos conservadores fizeram, Machen usou a nova erudição tanto para defender o Cristianismo histórico quanto para atacar a complacência do protestantismo corrente” (HART, 1995, p. 50).
Para Hart, a postura de Machen tem explicação na sua formação em Princeton. “Tão incongruente quanto parece, a doutrina da inerrância bíblica do Seminário de Princeton instigou seus estudiosos a intensificar o estudo crítico ao invés de fugir dele” (HART, 1995, p. 42). Hart esclarece:
[…] teólogos de Princeton usavam métodos críticos para argumentar que inspiração e erudição avançada eram compatíveis. […] Ao invés de impor limites, essa doutrina [inspiração] permitiu os estudiosos de Princeton explorar completamente os aspectos humanos da formação e recepção da Bíblia (HART, 1995, p. 43).
Aqui se faz necessário uma palavra sobre o estudo da história no início do século XX. Uma nova concepção da pesquisa histórica estava surgindo – era a Nova História. Enquanto Machen “assumiu uma visão atemporal e estática do passado que objetivava encontrar o propósito original do autor” (HART, 1995, p. 55), os da nova escola estavam preocupados com os elementos sociais e culturais que explicavam os eventos históricos. Para essa escola, cristianismo não era definido pelos ensinos de Paulo e dos apóstolos; antes, como tudo nessa escola, Cristianismo era um fenômeno social. Muito da obra The Origin of Paul´s Religion de Machen foi investido para revelar “as explicações impróprias do naturalismo que atribuiu a crença de Paulo ao condicionamento do desenvolvimento histórico e cultural” (HART, 1995, p. 51).
Essa diferença entre escolas fica clara quando observamos as variações nos julgamentos feitos em resenhas e/ou comentários sobre The Origin of Paul´s Religion. Elas iam de elogios rasgados como os feitos por Benjamin W. Bacon até as críticas feitas por James Moffatt (HART, 1995, p. 53-4). Parte das críticas bem como dos elogios se davam pela concepção de história, e, por conseguinte, da metodologia empregada.
Machen reconhecia a intensa relação entre método e pressuposto. Ele era consciente de que não existia um “criticismo científico puramente neutro” (MACHEN, 2004, p. 519. Além disso, Machen tinha ciência de que muitas das pressuposições do criticismo eram naturalistas e por isso “uma pessoa sobrenatural, de acordo com os historiadores modernos, nunca existiu” (MACHEN, 1951, p. 175). Para ele, a negação do nascimento virginal, por exemplo, se dava por “pressuposições filosóficas ao invés da tradição histórica” (HART, 1995, p. 41).
Ele critica o pressuposto naturalista que nega o sobrenatural quanto lida com a tentativa liberal de separação o natural do sobrenatural no relato bíblico. Para ele “o processo de separação nunca foi realizado com sucesso.” (MACHEN, 2001, p. 108), pois revela inconsistência entre os pressupostos e as conclusões. Ele nos alista três razões para o fracasso de uma “leitura seccionada” dos Evangelhos:
Em primeiro lugar, existe a dificuldade inicial de separar a narrativa natural da narrativa sobrenatural nos Evangelhos. As duas são inextrincavelmente interligados. […] Em segundo lugar, suponhamos que a primeira tarefa tenha sido realizada. É realmente impossível, mas suponhamos que tenha sido realizada. Você tem o Jesus histórico – um mestre da justiça, um profeta inspirado, um adorador puro de Deus. […] Mas tudo em vão! […] Há uma contradição bem no centro do Seu ser. Essa contradição surge de sua consciência messiânica. (MACHEN, 1951, p. 176-7).
Aqui temos um grande problema, afirma Machen. Para os mesmo liberais que afirmam, por meio da crítica histórica, que Jesus tinha uma consciência messiânica, “um humilde mestre que pensa ser o juiz da terra […] seria um insano” (MACHEN, 1951, p. 176-7).
“Em terceiro lugar, o Jesus liberal é insuficiente para explicar a origem da Igreja Cristã. O poderoso edifício da cristandade não foi construído em um pin-point” (MACHEN, 1951, p. 176-7). E, nas palavras de Machen, “história odeia um vácuo” (MACHEN, 1951, p. 181-2). Para Machen, “A Igreja Cristã […] é fundamentada na ressurreição de Cristo dos mortos. Se a ressurreição é negada, então a origem da Igreja torna-se um problema insolúvel” (MACHEN, 1997, p. 58). “A igreja não foi fundada na memória de um mestre morto, mas na presença de um Senhor vivo. A mensagem, ‘Ele ressuscitou’ – é o coração do Evangelho” (MACHEN, 1997, p. 59). Com essas três considerações, Machen revela a contradição entre as conclusões dos liberais com seus pressupostos anti-sobrenaturais.
Em suma, Machen tinha o estudo da história como essencial para o estudante das Escrituras. Por ser um livro histórico, a Bíblia faz daqueles que a desejam entendê-la verdadeiros historiadores. O historiador, por sua vez, deve ser coerente com os dados extraídos da pesquisa histórica séria, providenciando assim explicações lógicas para os eventos históricos uma vez que “história odeia um vácuo”. Além disso, deve ser cuidadoso visto que não existe neutralidade na pesquisa histórica. Sem esquecer-se, claro, de não ignorar as pesquisas da crítica histórica.
6 CONCLUSÃO
Temos muito a aprender com o zelo de Machen para com a historicidade do cristianismo. São muitas as implicações extraídas das colocações feitas pelo teólogo de Princeton. Aqui queremos alistar cinco:
Em primeiro lugar, intelectualidade não é antagônica à espiritualidade. Não podemos apelar à providência sempre estivermos diante das acusações feitas por estudiosos ignorando os fatos que se impõe; nem muito menos supersticiosamente ignorar os dados do estudo crítico. Em contraponto, ao mesmo tempo em que nos desafia ao estudo profundo, Machen reconhece que toda análise é direcionada por pressupostos.
Em segundo lugar, o assentimento da historicidade dos eventos bíblicos nos desperta para a tarefa missionária. Por possuir uma mensagem histórica e não “existencial atemporal”, o cristão não pode esperar que o homem encontre dentro de si mesmo o diagnóstico e a resposta para seus problemas. Ele precisa ouvir a notícia da morte expiatória e ressurreição corpórea de Cristo para responder com fé. “A fé vem pela pregação” (Rm. 10.17).
Em terceiro lugar, Machen desafia a igreja a extrair das boas notícias tanto sua doutrina quanto sua ética. A ênfase em ética ou em bons conselhos desvinculada dos eventos chaves do cristianismo nivela a igreja cristã a outras religiões. “É a conexão da experiência presente do crente com a aparição histórica real de Jesus no mundo que previne nossa religião de ser misticismo e faz com que seja cristianismo” (MACHEN, 2001, p.122).
Em quarto lugar, Machen nos ajuda com a tarefa apologética. A fé é uma resposta a um evento histórico (Rm. 10.17), portanto, não pode nascer de dentro de nós mesmo via argumentação. Nenhuma manobra filosófica pode levar pessoas à fé cristã visto que fé é uma resposta (reação) ao anúncio de um evento histórico. Em suas palavras: “não algo [é] que pode ser deduzido ou descoberto […] não filosofia, mas história” (MACHEN, 1951, p. 171).
Por último, Machen desafia aqueles que hoje se denominam “fundamentalistas” a lutar pelos elementos fundamentais da fé como aqueles da primeira fase. Quando estudamos a história de Machen, ficamos tristes em constatar que os “princípios elementares” dos primeiros fundamentalistas tornaram-se “pormenores fundamentais”. A luta dos primeiros fundamentalistas era pela inerrância das Escrituras, a historicidade dos eventos bíblicos etc. Hoje, ser fundamentalista é lutar por ou contra instrumentos musicais, versões, dispensacionalismo e questões específicas envolvendo a liberdade de consciência. Essa, com certeza, não foi a luta de Machen; certamente não é a minha, e espero que não seja a sua.
Entendendo os fundamentalistas - Parte 1
O nome
fundamentalistas foi cunhado para se referir aos conservadores que se coligaram
para defender a fé cristã da intrusão do liberalismo.
Para muitas pessoas, o tema deste
artigo pode parecer árido, acadêmico e sem qualquer importância. Entretanto,
considerando os argumentos abaixo, sua relevância ficará clara. Primeiro, o fundamentalismo está em evidência no mundo .
Em todo o mundo, grupos religiosos fundamentalistas estão crescendo
rapidamente. Na América Latina, grupos pentecostais radicais se multiplicam e
mudam as estatísticas gerais. Na Coréia do Sul e no Taiwan, centros do
confucionismo neotradicionalista se firmam. No Japão, uma nova versão radical
do budismo cresce rapidamente. E o fundamentalismo do mundo islâmico é
conhecido por todos.
Nos Estados Unidos e em outras
partes do mundo, o fundamentalismo cristão ganha força, após um período de
aparente extinção. Muito embora existam profundas diferenças entre esses grupos
mencionados, eles têm em comum o desejo de retornar aos fundamentos e às
origens de sua religião, e estão dispostos a lutar por isto.
Segundo, o termo “fundamentalista”
designa uma larga porcentagem do cristianismo
norte-americano , com ramificações no mundo e também no
Brasil. A influência do fundamentalismo no Brasil não pode ser esquecida ou
minimizada.
Terceiro, o uso pejorativo do termo . Determinados
termos, dentro do cristianismo, acabam por perder seu sentido original e
adquirir uma conotação pejorativa. Não poucas vezes, estes termos pejorativos
são usados irresponsavelmente para rotular adversários políticos e
eclesiásticos, e com generalizações injustas. Se pudermos, devemos sempre
ajudar a esclarecer o que o termo significa.
E, finalmente, existem bem poucos
estudos sobre o tema “fundamentalismo” no meio evangélico. Se pudermos ajudar
no esclarecimento da Igreja de Cristo sobre este assunto, ficaremos gratos a
Deus.
O surgimento do
liberalismo teológico
A melhor maneira de compreender a
origem do termo “fundamentalista” é entender o crescimento do liberalismo
teológico radical nas principais denominações históricas dos Estados Unidos no
fim do século XIX e início do século XX. O liberalismo era, de muitas maneiras,
um fruto do iluminismo, movimento surgido no início do século XVIII que tinha
em seu âmago uma revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra
a religião em geral. As pressuposições filosóficas do movimento eram, em
primeiro lugar, oracionalismo de
Descartes, Spinoza e Leibniz e o empirismo de
Locke, Berkeley e Hume. Os efeitos combinados dessas duas filosofias – que,
mesmo sendo teoricamente contrárias entre si, concordavam que Deus tem que
ficar de fora do conhecimento humano – produziu profundo impacto na teologia
cristã.
Em muitas universidades cristãs,
seminários e igrejas da Europa (e, posteriormente, nos Estados Unidos), as
idéias racionalistas começaram a ganhar larga aceitação. Não é que os teólogos
se tornaram ateus ou agnósticos, mas sim, que procuraram compatibilizar a
crença em Deus com os postulados do racionalismo. Muitos teólogos passaram a
afirmar a existência de Deus, mas negavam sua intervenção na História humana,
quer através de revelação, quer através de milagres ou da providência.
Como resultado da invasão do
racionalismo na teologia, chegou-se à conclusão de que o sobrenatural não invade a história . A história
passou a ser vista como simplesmente uma relação natural de causas e efeitos. O
conceito de que Deus se revela ao homem e de que intervém e atua na história
humana foram excluídos “de cara”. Como conseqüência, os relatos bíblicos
envolvendo a atuação miraculosa de Deus na História, como a criação do mundo,
os milagres de Moisés e os milagres de Jesus, passaram a ser desacreditados.
Segundo esta linha de pensamento, já que milagres não existem, segue-se que
esses relatos são fabricações do povo de Israel e, depois, da Igreja, que
atribuiu a Jesus atos sobrenaturais que nunca aconteceram historicamente.
Para se interpretar corretamente a
Bíblia, seria necessária uma abordagem “não religiosa”, desprovida de conceitos
do tipo “Deus se revela”; ou: “A Bíblia é a revelação infalível de Deus”; ou
ainda: “A Bíblia não pode errar”. Teólogos protestantes que adotaram essa
abordagem crítica (que consideravam como “neutra”) justificavam-se afirmando
que a Igreja Cristã, pelos seus dogmas e decretos, havia obscurecido a
verdadeira mensagem das Escrituras. No caso dos Evangelhos, os dogmas dos
grandes concílios ecumênicos acerca da divindade de Jesus haviam obscurecido
sua figura humana e tornaram impossível, durante muito tempo, uma reconstrução
histórica da sua vida. Esta impossibilidade, eles afirmavam, tornou-se ainda
maior após a Reforma, quando a exegese dos Evangelhos e da Bíblia em geral
passou a ser controlada pelas confissões de fé e pela teologia sistemática.
Os estudiosos críticos
argumentaram ainda que, para que se pudesse chegar aos fatos por trás do
surgimento da religião de Israel e do cristianismo, seria necessário deixar
para trás dogmas e teologia sistemática, e tentar entender e reconstruir os
fatos daquela época. O principal critério a ser empregado nessa empreitada
seria a razão ,
que os racionalistas entendiam como sendo a medida suprema da verdade. As ferramentas
a serem usadas seriam aquelas produzidas pela crítica bíblica, como crítica da
forma, crítica literária, entre outras. Assim, muitos pastores e teólogos que
criam que a Bíblia era a Palavra de Deus, influenciados pela filosofia da
época, tentaram criar um sistema de interpretação da Bíblia que usasse como
critério o que fosse racional ao homem moderno, dando origem ao chamado “método
histórico-crítico” de interpretação bíblica.
Os estudiosos responsáveis pelo
surgimento e desenvolvimento inicial do método crítico defendiam que o “dogma”
da inspiração divina da Bíblia deveria ser deixado fora da exegese para que ela
pudesse ser feita de forma “neutra”. Seguiu-se a separação entre Palavra de
Deus e Escritura Sagrada, rejeitando-se o conceito da inspiração e
infalibilidade da Bíblia. Surge a idéia de “mito” na Bíblia, que era a maneira
pela qual a raça humana, em tempos primitivos, articulava aquilo que não
conseguia compreender. Segundo os exegetas críticos, as fontes que os autores
bíblicos usaram estavam revestidas de “mitos”, ou lendas criadas por Israel e
pela Igreja apostólica. O surgimento da dialética de Hegel marcou esta fase.
Hegel oferecia uma visão da História sem Deus, explicando os acontecimentos não
em termos da intervenção divina, mas em termos de um movimento conjunto do
pensamento, fazendo sínteses entre os movimentos contraditórios (tese e
antítese).
A tentativa de unir o racionalismo
com a exegese bíblica não produziu um resultado satisfatório. Ficou-se com uma
Bíblia que deixou de ser a Palavra de Deus para se tornar o testemunho de fé do
povo de Israel e da Igreja Primitiva. Como resultado, surgiu um movimento
dentro do cristianismo que se chamou liberalismo,
o qual rapidamente influenciou as igrejas cristãs na Europa, e de lá, seguiu
para os Estados Unidos, onde defendia os seguintes pontos:
· O caráter de Deus é de puro amor, sem padrões morais .
Todos os homens são seus filhos e o pecado não separa ninguém do amor de Deus.
A paternidade de Deus e a filiação divina são universais.
· Existe uma centelha divina em cada pessoa .
Portanto, o homem, no íntimo, é bom, e só precisa de encorajamento para fazer o
que é certo.
· Jesus Cristo é Salvador somente no sentido em que ele é o exemplo
perfeito do homem . Ele é Deus somente no sentido de que tinha
consciência perfeita e plena de Deus. Era um homem normal, não nasceu de uma
virgem, não realizou milagres, não ressuscitou dos mortos.
· O cristianismo só é diferente das demais religiões quantitativamente, e
não qualitativamente . Ou seja, todas as religiões são boas e
levam a Deus; o cristianismo é apenas a melhor delas.
· A Bíblia não é o registro infalível e inspirado da revelação divina ,
mas o testamento escrito da religião que os judeus e os cristãos praticavam.
Ela não fala de Deus, mas do que criam sobre ele.
· A doutrina ou as declarações proposicionais, como as que encontramos nos
credos e confissões da Igreja, não são essenciais
ou básicas para o cristianismo , visto que o que molda e forma a religião é a
experiência, e não a revelação. A única coisa permanente no cristianismo, e que
serve de geração a geração, é o ensino moral de Cristo.
Nem todos os liberais abraçavam
todos estes pontos, e havia diferentes manifestações do liberalismo.
Entretanto, todas elas estavam enraizadas no racionalismo (só a ciência tem a verdade) e no naturalismo(negação da intervenção criadora de Deus no mundo),
e queriam adaptar as doutrinas do cristianismo à moderna teoria científica e às
filosofias da época.
A reação conservadora: surgimento do fundamentalismo cristão
O nome “fundamentalistas” foi
cunhado para se referir aos pastores, presbíteros e professores conservadores
americanos de todas as denominações históricas que se coligaram para defender a
fé cristã da intrusão do liberalismo nos seus seminários e igrejas. O nome foi
usado por três motivos. Primeiro, os conservadores insistiam que o liberalismo
atacava determinadas doutrinas bíblicas que eram fundamentais do cristianismo e
que, ao negá-las, transformava o cristianismo em outra religião, diferente do
cristianismo bíblico.
Segundo, a publicação em 1910-1915
da série “Os fundamentos”, doze volumes de artigos escritos por conservadores
que defendiam os pontos fundamentais do cristianismo e atacavam o modernismo, a
teoria da evolução etc., dos quais foram publicadas 3 milhões de cópias e
espalhadas pelos Estados Unidos. Há artigos de eruditos conservadores como J.G.
Machen, John Murray, B.B. Warfield, R.A. Torrey, Campbell Morgan e outros.
Terceiro, a elaboração de uma
lista dos pontos considerados fundamentais do cristianismo. Muito embora o
conflito entre liberais e fundamentalistas envolvesse muito mais do que somente
esses tópicos, citados abaixo, foram considerados na época pelos conservadores
como os pontos fundamentais da fé e do cristianismo evangélico, tendo se
tornado o slogan dos conservadores e a bandeira do movimento fundamentalista:
A inspiração, infalibilidade e inerrância
das Escrituras – reagindo contra os ataques do liberalismo que considerava que
a Bíblia estava cheia de erros de todos os tipos.
A divindade de Cristo – também negada pelos liberais, que insistiam que Jesus era apenas um homem divinizado.
O nascimento virginal de Cristo e os milagres – para o liberalismo, milagres nunca existiram, eram construções mitológicas da Igreja primitiva.
O sacrifício propiciatório de Cristo – para os liberais, Cristo havia morrido somente para dar o exemplo, nunca pelos pecados de ninguém.
Sua ressurreição literal e física e seu retorno – ambas doutrinas eram negadas pelos liberais, que as consideravam como invenção mitológica da mente criativa dos primeiros cristãos.
Em 1920, o termo “fundamentalistas” foi empregado por conservadores batistas para designar todos aqueles que lutassem em favor destes cinco pontos. O uso se espalhou para todos, de todas as denominações afetadas pelo liberalismo que lutavam para preservar estas doutrinas fundamentais do cristianismo, e que se alinhavam teologicamente com o conteúdo da obra “Os fundamentos”.
A divindade de Cristo – também negada pelos liberais, que insistiam que Jesus era apenas um homem divinizado.
O nascimento virginal de Cristo e os milagres – para o liberalismo, milagres nunca existiram, eram construções mitológicas da Igreja primitiva.
O sacrifício propiciatório de Cristo – para os liberais, Cristo havia morrido somente para dar o exemplo, nunca pelos pecados de ninguém.
Sua ressurreição literal e física e seu retorno – ambas doutrinas eram negadas pelos liberais, que as consideravam como invenção mitológica da mente criativa dos primeiros cristãos.
Em 1920, o termo “fundamentalistas” foi empregado por conservadores batistas para designar todos aqueles que lutassem em favor destes cinco pontos. O uso se espalhou para todos, de todas as denominações afetadas pelo liberalismo que lutavam para preservar estas doutrinas fundamentais do cristianismo, e que se alinhavam teologicamente com o conteúdo da obra “Os fundamentos”.
Entendendo
os fundamentalistas - Parte 2
Uma análise do
desenvolvimento histórico e teológico do fundamentalismo na Igreja Cristã nos
Estados Unidos e no Brasil
As principais fases do movimento
fundamentalista nos Estados Unidos
Nesta parte, analisaremos o
desenvolvimento histórico e teológico do fundamentalismo na Igreja Cristã nos
Estados Unidos e no Brasil. Podemos dividir sua história em quatro fases.
Fase 1: Conflito e
derrota (até meados da década de 1920)
Nesta fase inicial, líderes
conservadores levantaram a bandeira contra o liberalismo ou modernismo dentro
de suas denominações. Eles estavam lutando contra a incredulidade, antes que os
liberais finalmente tomassem o controle dos seminários e da administração. O
objetivo era expulsar os liberais das fileiras das igrejas. Várias medidas
foram tomadas com este fim. Entre elas destacamos a publicação da série “Os
fundamentos”. O alvo foi atacar o naturalismo, o liberalismo e todos os males a
eles associados. A inerrância da Palavra de Deus é reafirmada nesta obra como
sendo doutrina bíblica e fundamental. Os conservadores, a esta altura já
conhecidos como “fundamentalistas”, se organizam em associações e em movimentos
dentro das denominações. Surgem as listas dos “pontos fundamentais” que, embora
variando quanto aos itens, concordam que a inerrância da Bíblia é essencial. As
denominações realizam encontros e reuniões para debater o assunto.
Um importante fato ocorrido neste
período foi que J. Gresham Machen e outros importantes professores
conservadores deixam o Seminário Presbiteriano de Princeton, que fica nas mãos
dos liberais, e fundam o Seminário de Westminster. É publicado o importante
livro de Machen, Cristianismo e liberalismo (1923), um clássico
sobre o assunto. Os fundamentalistas tentam também, através dos meios
políticos, promulgar leis federais e nos Estados, proibindo o ensino do
evolucionismo. Mas são derrotados no caso Scopes (1925), o julgamento de um
professor de escola secundária que ensinava evolução em classe. Gradativamente,
o movimento fundamentalista começa a adotar o pré-milenismo como um dos pontos
fundamentais da fé cristã, o que provocará, na fase seguinte, um importante
racha no movimento
.
Fase 2: Separação e
organização (até meados da década de 1940)
Nesta fase, o movimento
fundamentalista percebe o fracasso em expulsar os liberais das fileiras das
grandes denominações reformadas, muito embora os conservadores fossem a maioria
nestas denominações. Como resultado, separam-se, formando novas instituições,
associações, igrejas e denominações. São formadas novas denominações ,
como a Associação Geral de Igrejas Batistas Regulares (1932), a Igreja
Presbiteriana da América – que, em seguida, mudou o nome para Igreja
Presbiteriana Ortodoxa (OPC), liderada por J. Machen (1936) –, a Associação
Batista Conservadora da América (1947), as Igrejas Fundamentalistas
Independentes da América (1930) e muitas outras. No sul dos Estados Unidos, os
fundamentalistas dominaram a maior denominação batista, a Convenção Batista do
Sul, a Igreja Presbiteriana do Sul, a Associação Batista Americana e muitas
outras denominações. Todas estas defendem os pontos fundamentais,
particularmente a inerrância da Palavra de Deus.
Os fundamentalistas formaram
também muitas associações e juntas missionárias, seminários e institutos
bíblicos, periódicos, conferências bíblicas pelo país afora para evangelização,
defesa da fé e treinamento bíblico de pastores, missionários e obreiros. O
movimento começa a associar-se com alguns valores morais da cultura americana,
como a abstinência completa do álcool.
É nesta fase que o movimento
fundamentalista se divide pela primeira vez. A causa da separação foi que
muitos fundamentalistas queriam considerar o pré-milenismo como um dos pontos
fundamentais do cristianismo. Além disto, havia a identificação crescente deles
com a total abstinência de bebida alcoólica e rejeição das descobertas e
avanços das ciências. Sai um grupo liderado por Carl McIntire para formar a
Igreja Presbiteriana da Bíblia e o Seminário Teológico da Fé (1938). Com ele
saíram Francis Schaeffer e Alan McRae, que posteriormente vieram também a
afastar-se de McIntire.
O ponto principal é que nesta fase
entra no movimento fundamentalista o conceito de separação organizacional de
qualquer associação ou denominação que mantenha e tolere liberais em seu meio .
Infelizmente, os fundamentalistas entenderam que a separação era a única forma
bíblica para manter a pureza da fé e a integridade dos pontos fundamentais do
cristianismo. Conseqüentemente, o termo “fundamentalista” começa a ter
conotação de intransigência, divisionismo, intolerância, anti-intelectualismo e
falta de preocupação com problemas sociais. Assim, no fim desta fase, o nome
“fundamentalistas” se referia aos cristãos conservadores separatistas, que eram
maioria dentro das denominações ao sul dos Estados Unidos, e aos que haviam
saído de suas denominações, formando outras de caráter eminentemente
fundamentalista.
Fase 3:
Neo-evangelicalismo (até meados de 1970)
Nesta fase o fundamentalismo
continua a batalha contra o liberalismo, de fora das denominações e contra um
novo inimigo, o neo-evangelicalismo. O movimento ganha repercussão
internacional. Os fundamentalistas criam programas de rádio e televisão e
fundam faculdades que os mantêm unidos e ligados como numa rede invisível. É
então que surge o neo-evangelicalismo ou evangelicalismo , uma ala dentro do
movimento fundamentalista que deseja preservar os pontos fundamentais da fé,
mas não deseja o espírito separatista da primeira geração de fundamentalistas.
O evangelicalismo procura comunhão e associação com outros cristãos,
pentecostais, conservadores e mesmo liberais, desejando fugir do rótulo
“fundamentalista”, embora afirme, a princípio, a inerrância das Escrituras.
Esta segunda divisão no movimento
atinge seriamente igrejas, denominações e seminários fundamentalistas. Os que
se consideravam “evangélicos” saem do movimento fundamentalista para formar
novas associações e igrejas “evangelicais”. Em termos organizacionais, surge
nos Estados Unidos o Concílio Americano de Igrejas Cristãs, fundado por Carl
McIntire (1941), representando os fundamentalistas, e a Associação Nacional de
Evangélicos (1942), representando os evangelicais. Surgem o Seminário Fuller, a
revista Christianity Today ,
o Wheaton College e a Associação Billy Graham, dentro da perspectiva
“evangelical”. O fundamentalismo começa a atacar o evangelicalismo,
considerando-o um grande perigo ao verdadeiro cristianismo por causa de sua
abertura a outros cristãos, associação com liberais e tendência de acomodar a
fé à ciência moderna.
Da parte dos fundamentalistas, é
criado o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs (1948), formado por
denominações, igrejas e indivíduos que se identificaram com a bandeira
fundamentalista, em oposição ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI), ecumênico e
liberal em muitos aspectos. Nesta fase, o fundamentalismo se tornou menos
proeminente, e alguns até pensaram que havia morrido. Na verdade, estava se
expandindo através de evangelização, publicações, plantação de igrejas e
programas de rádio.
Fase 4: Luta contra
o humanismo secular (até meados de 1980)
A partir da campanha de Ronald
Reagan para a presidência dos Estados Unidos, o fundamentalismo americano
entrou numa nova fase. Ganhou proeminência por oferecer uma solução para a
crise social, econômica, moral e religiosa da América, que envolvia legalização
do aborto, proibição da leitura da Bíblia e oração nas escolas públicas etc. O
inimigo era o humanismo secular ,
responsável por corroer os valores morais, as escolas, universidades, o Governo
e a família. Os males associados ao humanismo eram: evolucionismo, liberalismo
político e teológico, moralidade frouxa, perversão sexual, socialismo,
comunismo e o ataque à autoridade das Escrituras. Para combater o novo inimigo,
surgem de dentro do fundamentalismo novos ministérios fundados e liderados por
uma nova geração de fundamentalistas, utilizando-se da mídia televisiva e
impressa. Entre eles despontam Jerry Falwell, Tim LaHaye, Hal Lindsey, James Dobson
e Pat Robertson. A base era a Convenção Batista do Sul, mas atingiram
rapidamente todas as denominações e também outros países, como o Brasil. Ao
contrário de gerações anteriores de fundamentalistas, envolveram-se com
questões sócio-políticas. Fundamentalistas antigos, como Carl McIntire, somem
do cenário por causa de desgaste político e extremo isolamento.
O alvo principal dos ataques
fundamentalistas nesta época era o domínio do
governo por humanistas e as conseqüências disto
para a nação, em termos da libertinagem e relaxamento dos valores morais.
Acreditavam que havia uma conspiração humanista para tomar a América e banir o
cristianismo. A luta do fundamentalismo é contra os direitos dos homossexuais,
do uso de drogas, o movimento feminista, associações com a Rússia, posse de
armas. Por outro lado, os fundamentalistas se engajam na luta pelo ensino do
criacionismo nas escolas, ao lado do evolucionismo.
Esses novos líderes
fundamentalistas mantinham os mesmos pontos doutrinários e a mesma visão separatista
da primeira geração de fundamentalistas, embora enfrentassem um outro inimigo,
o humanismo secular. Sua mensagem foi de chamar a Igreja a retornar aos
fundamentos da Palavra de Deus como chave para uma nova reforma na sociedade e
na Igreja. Neste sentido, foi formada a Maioria Moral (1979),
sob a liderança de Jerry Falwell, para combater o liberalismo moral e social
nos Estados Unidos. Nisto se associam com católicos, pentecostais e judeus de
pensamento igual ao deles.
O fundamentalismo ganhou mais força
nesta época com o fato de que o movimento evangelical começou a dar mostras de
que a política de boa vizinhança com liberais e católicos terminava em prejuízo
para a fé bíblica. Líderes evangelicais, bem como seminários e publicações
evangelicais, começaram a aceitar o evolucionismo teísta, o ecumenismo com
católicos e liberais (Billy Graham). Associações evangelicais de teólogos
começaram a tolerar teólogos que questionavam mesmo a onisciência de Deus. Por
outro lado, os escândalos na década de 1980, envolvendo o casal Bakker,
televangelistas fundamentalistas, causaram um grande revés no movimento
fundamentalista nos Estados Unidos. Surgem movimentos radicais de dentro do
fundamentalismo, como o Reconstrucionismo de
Gary North e Rushdoony.
Apesar de tudo, o fundamentalismo
nos Estados Unidos continua firme e crescendo. O crescimento, entretanto, não
se faz em termos denominacionais, mas da multiplicação da mentalidade
fundamentalista nos aspectos teológicos e apologéticos, dentro das denominações
tradicionais e no crescimento de ministérios, missões, institutos e seminários
de posição teológica fundamentalista.
(continua)
Entendendo os
fundamentalistas - Parte 3
Terminando essa
série de artigos sobre o fundamentalismo cristão, gostaria de fazer algumas
distinções sobre o termo “fundamentalista”. À semelhança de outros rótulos nos
meios evangélicos, o rótulo “fundamentalista” também é mal compreendido e mal
empregado. Nada mais natural do que procurar esclarecer o assunto. Acho que a
primeira coisa é falar sobre os vários possíveis sentidos em que o termo
“fundamentalista” é empregado.
O
fundamentalista histórico não existe mais. Ele existiu no início do século 20,
durante o conflito contra o liberalismo teológico que invadiu e tomou várias
denominações e seminários nos Estados Unidos. J.G. Machen, John Murray, B.B.
Warfield, R.A. Torrey, Campbell Morgan e, mais tarde, Cornelius Van Til e
Francis Schaeffer são exemplos de fundamentalistas históricos. Falei sobre esse
tipo de fundamentalista no meu primeiro artigo dessa série.
O fundamentalista
americano ainda existe, mas perdeu muito de sua força. Embora tenha surgido ao
mesmo tempo que o histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia
dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos, exerceu
uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã, como
o comunismo, o ecumenismo, o liberalismo, a ciência moderna e o próprio
evangelicalismo. Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e
todos que estivessem ligados direta ou indiretamente a esses inimigos.
Recentemente, faleceu o que pode ter sido o último grande representante desse
gênero de fundamentalista, o famigerado Carl McIntire. Alguns consideram que
Pat Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles. Veja
mais sobre esse tipo no segundo artigo da série.
O fundamentalista
denominacional é aquele membro de denominação que se considera oficialmente
fundamentalista e que até traz o rótulo na designação oficial. Após um período
de grande florescimento no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as
igrejas fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande
diminuição em suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas
presbiterianas regressaram à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde saíram na
década de 1950. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi
marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde sei,
não há mais esse laço.
No Brasil, o
fundamentalismo denominacional que sobrou desenvolveu uma síndrome de
conspiração mundial para o surgimento do reino do anticristo através do
ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências.
Acrescente-se ainda o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a
itens periféricos como se fossem o cerne do Evangelho e critério de ortodoxia
(por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no
Texto Majoritário, quem não assiste desenhos da Disney e não lê a série “Harry
Potter”).
O fundamentalista
xiita é sinônimo de intransigência, inflexibilidade, ser-dono-da-verdade e
patrulhamento teológico. Este tipo tem mais a ver com atitude do que com
teologia. Nesse caso, é melhor inverter a ordem e chamá-lo “xiita
fundamentalista”. Na verdade, xiitas podem ser encontrados em qualquer dos
campos protestantes. A propalada tolerância dos liberais, neoliberais e
neo-ortodoxos é mito. Há xiitas liberais, neoliberais, neo-ortodoxos e,
obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um
fundamentalista histórico e denominacional, e ainda não ser um xiita .
Por fim, o
fundamentalista teológico , outro sentido em que o termo é muito usado. O
fundamentalista teológico se considera seguidor teológico dos fundamentalistas
históricos e simpatiza com a luta deles. Sem pretender ser exaustivo, acredito
que são considerados fundamentalistas teológicos atualmente os que aderem aos seguintes
conceitos ou a parte deles: a inerrância da Bíblia, a divindade de Cristo, o
seu nascimento virginal, a realidade e a historicidade dos milagres narrados na
Bíblia, a morte de Cristo como propiciatória, sua ressurreição física de entre
os mortos, seu retorno público e visível a este mundo, o conceito de verdades
teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou de forma proposicional,
a aceitação dos credos e confissões da Igreja Cristã, a adoção do método
gramático-histórico de interpretação bíblica, uma posição conservadora em
assuntos como aborto e eutanásia, a preferência pela pregação expositiva, gosto
pelos escritos dos puritanos antigos e modernos, a rejeição do liberalismo
teológico e da neo-ortodoxia, a crença de que Deus criou o mundo em sete dias,
a rejeição da ordenação feminina, não-rejeição da pena de morte e outros. Há
quem queira acrescentar a essa lista os que votaram contra o desarmamento, são
contra o esquerdismo brasileiro e gostam dos Estados Unidos.
Em linhas gerais, o
fundamentalista teológico acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia
não evolui, não cresce e nem muda. Permanece a mesma através do tempo. A nossa
compreensão dessa verdade pode mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca
chega ao ponto radical em que verdades antigas sejam totalmente descartadas e
substituídas por novas verdades que, inclusive, contradigam as primeiras. O
fundamentalista teológico reconhece que erros, exageros e absurdos tendem a ser
incorporados através dos séculos na teologia cristã, e que o alvo da Igreja é
sempre reformar-se à luz dos fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses
erros e assimilando o que for bom. Admite também que existe uma continuidade
teológica válida entre o sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que
abraça hoje.
Na categoria de
fundamentalistas teológicos, encontramos presbiterianos, batistas,
congregacionais, pentecostais, episcopais e provavelmente muitos outros. É
claro que nem todos subscrevem todos os pontos acima, e ainda outros gostariam
de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no geral, acho que posso dizer
que os fundamentalistas teológicos não fariam feio numa pesquisa de opinião
sobre o que crêem os evangélicos brasileiros.
(Este artigo final é
uma adaptação de meu post colocado no blog O Tempora! O Mores! )
A apresentação da
leitura de Cristianismo e liberalismo tem por objetivo apontar o modo como John
Gresham Machen identifica o liberalismo moderno como uma outra religião
diferente da cristã. Aponta à religião cristã, os dogmas, doutrinas e a
história neotestamentária como elementos fundamentais e inseparáveis
caracterizadores desta Religião. Portanto, negá-los é negar todo o fundamento
cristão.
Por que ler Machen
hoje? Quando igrejas e seminários teológicos sucumbem desacreditados dos dogmas
e da veracidade dos relatos bíblicos, sem saberem a que se agarrar, o teólogo
desafia a modernidade apresentando a histórica fé cristã como sempre atual.
Com Machen, a “fé
conservadora” ergue a sua cabeça, não apenas para apontar os erros
hermenêuticos e exegéticos (eixegéticos) modernos, mas também firmar a
veracidade das Escrituras. E J. G. Machen não faz isto para se justificar das
acusações recebidas da teologia liberal ou neo-ortodoxa nos séculos XIX e XX.
pelo contrário, Machen procura colocar a fé conservadora sobre uma base de tal
autoridade capaz de ser objetivamente plausível e analisável, em nada perdendo
para o liberalismo e a neo-ortodoxia.
Acredita que esta fé
poderá sobressair às duas correntes teológicas posteriores a ela. Pelo menos,
assim julga ao expor que o seu “objetivo não é o de decidir a questão teológica
dos dias atuais, mas, tão somente, apresentar a questão da maneira mais vívida
e clara possível, para que o leitor possa ser auxiliado a decidir por si
mesmo”.1 Deste modo, para ele, a opção pela Teologia Conservadora procede de
bases justificáveis.
Curiosamente, Machen
não aponta as influências do Iluminismo sobre a teologia intra ou
extra-eclesiástica; afirma apenas que o surgimento do liberalismo teológico
deveu-se às mudanças sociais e intelectuais surgidas no século XIX.
Conjuntamente às grandes invenções e ao industrialismo, as ciências surgidas
com o especificismo2 do conhecimento humano em diferentes esferas, grassaram à
fé e o orgulho de fazer parte deste momento histórico promoveu erosões
profundas à fé cristã.
Tantas convicções
tiveram de ser abandonadas que as pessoas acreditam que todas elas devem ser
deixadas de lado. [...] o Cristianismo, durante muitos séculos, tem apelado
para a veracidade de suas afirmações, não meramente nem mesmo primariamente
segundo experiências atuais, mas de acordo com certos escritos antigos, dos
quais o mais recente data de aproximadamente vinte séculos atrás.3
O fato de a religião
cristã ter como base as Escrituras, frente à ciência contemporânea, ela não se
retira e assiste alienada, de longe, o progresso desta como um inimigo capaz de
lhe calar a voz. Àqueles que consideram a fé cristã (ortodoxa) como opositora à
ciência e exige que ela siga por campo isolado do saber científico devem ser
censurados, pois, “a religião se tem baseado em diversas convicções,
especialmente na área histórica, que podem ser assuntos de investigação
científica”.4 Não é acerca de tal investigação que os teólogos liberais foram
levados a buscar a “essência do cristianismo”? Encontrar o “Jesus Histórico”
dentre as flores do mito apostólico? Todavia, seria eficaz provar que o
fundamento do cristianismo pode ser verificado pelas ciências humanas?
Segundo Machen, a
questão não é tão somente impor o cristianismo como um fenômeno antropológico
ou objeto de análise psicológica. Não se trata de fundamentar a fé cristã como
objeto da filosofia da religião. Os campos científicos não se contentam em
apenas estudar a superfície da fé cristã. É sabido que o materialismo moderno,
logo que possível, se oporá tanto ao idealismo filosófico do pregador liberal
quanto à fé nas doutrinas bíblicas.
Logo, o liberalismo
teológico se apresentará como uma tentativa frustrada de manter o cristianismo
confiável à geração vigente. Esta tentativa servirá, apenas para nos dar a
certeza de que o liberalismo teológico, mesmo com todo o seu esforço
intelectual para apresentar a “religião cristã’ como racional, não é nem
cristão, nem científico”.5
O argumento é
lógico, uma vez que ao tentar a conciliação entre cristianismo e ciência
moderna, o teólogo liberal abandona o que é característico à fé cristã: a
crença no Salvador pessoal, bem como a historicidade factual da fé cristã; isto
é, a ressurreição não só é dogma, mas também parte essencial da história6. O
cristianismo não dicotomiza da história aquilo que é factual do que é evento.
Cruz e ressurreição são elementos plenamente cabíveis numa mesma história.7
É deste modo que a
própria necessidade dos milagres é exigida. Dizer que milagres não são
possíveis, pois a História não lhe dá espaço numa existência onde o próprio
Criador se condiciona a necessidade ‘situacional’, é ter como a única opção o
misticismo ou imanentismo ou, até mesmo, o ateísmo.8 Seria negar o conteúdo
bíblico, bem como, definir o Deus bíblico como simplesmente humano. Esta
divindade é imanente, mas não transcendente. Não é sem razão que o melhor
consolo à razão humana seria aceitar o Cristianismo como um estilo de vida, mas
não como uma doutrina.9
Assim, resulta claro
o caminho o qual Machen trilhará: nem cristão, nem científico; o liberalismo
teológico é uma outra religião cujos fundamentos não procedem de uma fé
propriamente histórica. Alimenta-se da estrutura de outra religião cuja vida
engendra-se na história dos homens exigindo-lhes fé, mas suas raízes são
outras. “O liberalismo moderno não somente é uma religião diferente do
cristianismo, mas pertence a uma classe totalmente diferente de
religiões.”10 Falta-lhe a fé cristã e a agradável utilização da razão.
Mas, é fato que seu fundamento histórico se deve à religião cristã, sem a qual
ele não conseguiria sobreviver. Caso fosse o contrário; caso fosse o
cristianismo que dependesse do liberalismo moderno, teria este o poder para
sustentar a ‘nova religião’?11
Se pudéssemos
imaginar uma situação na qual toda pregação fosse controlada pelo liberalismo,
o que já é preponderante em muitos lugares, cremos que o cristianismo já teria
desaparecido da face da terra, e o Evangelho já não seria mais proclamado.12
Portanto, o
liberalismo moderno, antagonicamente ao pretendido, ocupa um lugar inferior à
própria fé cristã primitiva, cujo fundamento é as Sagradas Escrituras. A
procura de elevar a fé cristã a uma certa posição de intelectualidade e razão
histórica (perdida no kerygma do cristianismo primitivo), per si mesmo, o
liberalismo moderno tornou-se num misticismo moderno13, cujas bases dependem
d’outra religião14 à qual julga infantil.15
A base argumentativa
na qual Machen sustenta a proposição de que o Liberalismo moderno não é
Cristianismo está no Dogma e na História bíblica, presentes desde o princípio
na Igreja Primitiva. Segue numa exposição intrinsecamente bíblica,16 expondo a
proposição em seis pontos. Destes pontos, funda-se a proposição sobre as
perspectivas dogmáticas e históricas dos evangelhos como factuais à situação17
humana. Uma mente arguidora perceberá facilmente que cada capítulo de
Cristianismo e liberalismo reforçam a ideia de que o Liberalismo moderno é
inconsistente para consigo mesmo, uma vez que exclui os dogmas centrais da fé
cristã. Não é sem mais que Gresham retoma sempre, em cada capítulo, às
“pressuposições da mensagem da fé cristã.” É ratificada a ideia da
impossibilidade de um Jesus Histórico fora da realidade encarnacional na
história.18
O Jesus histórico
que os teólogos liberais diziam encontrar é estranhamente ausente nas mensagens
da Igreja Neotestamentária. Segundo Gresham, se negada a divindade de Jesus
Cristo e, sustentada apenas a ideia kerigmática dos apóstolos, até mesmo as
mais restritas narrativas com informações das ações e relações eclesiásticas (desprovidas
do aspecto do Cristo divino), entre a incipiente Igreja e os discípulos, também
deveriam ser desconsideradas.19 Pois, é possível, ainda que com lentes
puramente históricas, observar que havia um relacionamento de comum acordo
entre os apóstolos quanto a Jesus ser mais do que um exemplo ético de filiação
divina.20
Ora, os teólogos
liberais e conservadores concordam, ao menos, que a questão crítica às
epístolas paulinas confere com os dados históricos. Paulo teve contato com
aqueles homens que, de alguma forma, seguiram a Jesus de Nazaré. Então, pelos
escritos paulinos, obtemos uma amostra do tipo de fé que os crentes nutriam e
relacionavam entre si. As epístolas paulinas servem-nos de fonte de
[...] abundante
informação sobre a relação de Paulo com Jerusalém. Paulo era profundamente
interessado pela igreja de Jerusalém; ao se opor aos seus adversários
judaizantes, que de certa forma havia apelado, contra ele, aos apóstolos
originais, Paulo enfatizou a sua concordância com Pedro e os outros. Mesmo os
judaizantes não tinham objeção ao modo como Paulo considerava Jesus o objeto de
sua fé; nas epístolas, não há o mínimo indício de que tenha ocorrido algum
debate sobre esse assunto. [...] os apóstolos originais, evidentemente, não
deram o menor indício de se contraporem aos ensinos de Paulo. [...] Toda a
história do Cristianismo primitivo seria um labirinto sem saída se a igreja de
Jerusalém e Paulo não tivessem feito de Jesus o objeto da fé. O Cristianismo
primitivo, com certeza, não consistia em mera imitação de Jesus. [...] Jesus
não manteve a sua pessoa fora de seu Evangelho, pelo contrário, apresentou-se
como o salvador da humanidade.21
Procuraremos seguir
lógica bíblica de J. G. Machen sobre três passos em seu livro, Cristianismo e
liberalismo, a fim de entendermos o porquê de o liberalismo moderno (teológico)
ser diferente do cristianismo. Antes, seguirá uma disposição geral do argumento
descaracterizante entre as “duas religiões” e, depois, seguir-se-á a uma
análise dos capítulos:
1. O liberalismo
teológico não é cristianismo porque é inconsistente per si e/ou ilógico
J. G. Machen procura
associar a busca do conhecimento com a religião. Se a ressurreição de Cristo
tem alguma possibilidade de ser um fato (histórico), então, a razão que lida
com ele, e dele depende, não pode ser desprezada pela fé. Esta ideia denuncia o
erro do liberalismo moderno, uma vez que, manifesta a impossibilidade de a
razão provar a fé. Não é plausível afirmar que a razão seja capaz de inferir a
essência da religião. Assim, acreditar que se deve buscar pela essência
religiosa no homem mediante manifestações empíricas paralelas à Bíblia,
significa que o liberalismo está “somente rejeitando um sistema teológico e o
trocando por outro”.22
A questão é lógica,
pois, se ela versa sobre o fundamento da religião, todas as crenças são
igualmente verdadeiras. Porém, “se todas as crenças são igualmente verdadeiras,
e algumas delas contradizem as outras, então todas são igualmente falsas, ou
pelo menos incertas”.23
Tome-se, por
exemplo, o Jesus Histórico. Este não pode ser sobrenatural, caso contrário, não
seria histórico. Seria necessário que o Novo Testamento apresentasse o evento
histórico separado das narrativas dos milagres. Mas, honestamente, o leitor
sabe que tal separação (daquele evento histórico dos milagres a ele associados)
desfaz o entendimento da própria narrativa em si mesma. O “cerne da trama” se
desmancha e o próprio Jesus histórico torna-se alienado numa narrativa onde a
referência a si mesmo não é distinguível. 24
2. O liberalismo
moderno não é cristianismo porque possui características imanentistas que
excluem a crença no Deus transcendente e pessoal:
A religião cristã
lida com o paradoxo do Deus transcendental e imanente que coexiste
perfeitamente com suas criaturas. Trata-se de uma questão ontológica, quando o
Criador deve ser pessoal e, portanto, real (enquanto a criatura apenas existe).
A identificação de
Deus para com o mundo se dá num livre ato de vontade e não de necessidade. Mas,
ao criar, Ele necessariamente deve ser imanente aos seres criador, pois estes
não tem razão de ser em si mesmos caso esse se retire. As Escrituras asseguram
que no ato de criar, Deus mantém suas “propriedades” eternas como sempre foram,
embora mantenha relações para com as coisas criadas, fora de si mesmo. Sem esta
relação, os ‘entes’ não teriam permanência. Trata-se de uma relação de
dependência do criado e não do Criador.
É por isto que a
noção de paternidade universal é para os teólogos liberais uma das melhores
maneiras de garantir a ligação entre Criador e criatura. Nela, ambos comungam
duma mesma natureza, fazendo com que a religião assuma um papel, sobretudo,
empírico ou “sentimental”. Todavia, “deve-se observar que, se a religião
consistisse somente de sentimentos da presença de Deus, ela seria destituída de
qualquer qualidade moral. O puro sentimento, se é que existe tal coisa, é não
moral”.25 Não pode ser concebida na Religião a ideia do Transcendente e do
Imanente sem que se formule um conceito ou um dogma sobre Deus.
[...] Faz toda a
diferença o que pensamos sobre Deus; o conhecimento de Deus é a base da
religião. [...] No liberalismo moderno, por outro lado, essa distinção tão
aguda entre Deus e o mundo é totalmente destruída, e o nome “Deus” é aplicado
no próprio processo natural. Encontramo-nos em meio a um grande processo que se
manifesta naquilo que é extremamente pequeno e naquilo que é
extraordinariamente grande [...]. A esse processo natural do qual nós fazemos
parte, aplicamos o temível nome ‘Deus’. Dessa forma, portanto, Deus não é uma
pessoa distinta de nós; pelo contrário, nossa vida é uma parte da vida dele.
[...] O liberalismo moderno possui características panteísta, mesmo não sendo
consistentemente panteísta. Sua tendência é se desfazer, em todos os lugares,
da separação existente entre Deus e o mundo, e da precisa distinção entre Deus
e o homem.26
3. O liberalismo
teológico não é cristianismo porque nega o aspecto principal do cristianismo –
o dogma como elemento factual da história
O cristianismo
é, inerentemente, a religião do dogma e da história. Isto é percebido na ideia
de Machen sistematizada nos sete capítulos do livro. Logo na introdução se tem
a tese de que o liberalismo teológico não pode ser cristianismo; o capítulo um
dará lugar às doutrinas na religião cristã.
É significativo
observar que o lugar das doutrinas se estenderá pelos demais capítulos
subsequentes, o que fortalece a noção de que o cristianismo, além de fé e
racionalidade, ocupa um lugar epistemológico como nenhuma outra religião o pode
ocupar. Dos capítulos três ao sete, Machen argumenta em favor dos dogmas e
confissões de fé sobre Deus e o homem, a Bíblia, Cristo, salvação e a Igreja.
3.1. A doutrina
Conforme observado
acima, o cristianismo não pode ser crido independente da doutrina. A rejeição
dos liberais à Teologia Conservadora não se deve às frases e palavras
tradicionais, mas à semântica destas. Tornar a semântica das palavras e frases
do credo cristão em ideias próximas às da nova religião é, pois, uma maneira de
fortalecê-la sem que precise se expor e perder o espaço na igreja.
Poucos anseios têm
sido mais exagerados, por parte dos professores de teologia, do que o de evitar
ofender algo ou alguém. Muitas vezes, isso tem se aproximado perigosamente da
desonestidade. O professor de teologia, no mais profundo do seu coração, está
consciente do radicalismo do seu ponto de vista, mas permanece firme na decisão
de não perder o seu lugar na atmosfera santa da igreja ao expor o que pensa.27
É perigoso acreditar
que é racionalmente possível permanecer num campo neutro quando a questão é
religião. Se hoje é incongruente aceitar a ideia de um sujeito neutro na
abordagem científica, muito mais o será no âmbito da fé.28 O que se descobre no
criticismo moderno é, antes de tudo, que a rejeição aos dogmas doutrinários da
igreja se dá por certo grau de conveniência. Pois,
É desta forma que,
comumente, se expressa a moderna hostilidade à doutrina. Mas será que é
realmente a doutrina como tal que é rejeitada, ou será ou será que se rejeita
uma doutrina específica, para o benefício de outra? [...] Existem doutrinas do
liberalismo moderno que são defendidas com tanto vigor e intolerância quanto
qualquer outra doutrina encontrada nos credos históricos. [...] são doutrinas
como todas as outras, e assim exigem defesa intelectual. Ao demonstrar uma
aparente rejeição de toda a teologia, o pregador liberal, muitas vezes, está
rejeitando somente um sistema teológico e o trocando por outro. Assim, a tão
desejada imunidade de controvérsias teológicas não é alcançada.29
Ora, negar a
substituição dogmática entre as duas religiões é beirá-las ao ceticismo.
Podemos até considerar as controvérsias doutrinárias como quirelas frente à
necessidade de comunhão fraternal, ou seja, a experiência da fé na paternidade
universal, e ainda assim o cristianismo excluirá qualquer ideia teológica que
não compactue com o seu dogma. Mais uma vez, afirmamos que a rejeição aos
dogmas cristãos é rejeição a todo o sistema cristão. O cristianismo exige que o
seu sistema de fé caminhe com a história. Pois, dizer que o cristianismo é um
estilo de vida é já, por si mesmo, submetê-lo à investigação histórica. Se o
cristianismo é, então, um fenômeno histórico, deve ser investigado com bases
históricas, não?
O conceito de Machen
sobre doutrina pode fortalecer o comprometimento desta com a história. Segundo
ele,
A doutrina cristã
está nas próprias raízes da fé. Deve-se admitir, então, que se vamos ter uma
religião não doutrinária, ou uma religião doutrinária fundamentada meramente em
verdades gerais, isso significa que não somente temos que nos livrar de
Paulo, da igreja primitiva de Jerusalém, mas também de Jesus. Porém, o que
significa doutrina? Aqui, ela tem sido interpretada como qualquer apresentação
de fatos, com seus verdadeiros significados, que estejam na base da religião
cristã. Contudo, essa é a única definição da palavra? Será que ela não pode ser
tomada em um sentido mais específico? Não pode significar uma sistemática,
minuciosa e unilateral apresentação científica de fatos? Se a palavra for
tomada nesse sentido mais específico, será que a objeção moderna à doutrina não
envolve meramente uma objeção à sutileza excessiva da controvérsia teológica, e
de forma alguma uma objeção às brilhantes palavras do Novo Testamento?30
Resta-nos perguntar:
como pensar no cristianismo sem história e na Bíblia sem o dogma? Ao que
parece, o dogma é sempre um ponto de partida para qualquer forma de
conhecimento e, mormente, os fatos históricos. É assim que, ao abrir mão dos
fundamentos dogmáticos do cristianismo o pregador liberal abre mão desta
religião. Abrir mão dos fundamentos dogmáticos cristãos, procurando fazer a
distinção entre aquilo que é fato histórico do seu evento, é se tornar mais
imperativo ou dogmático do que o próprio cristianismo em si. Pois, o cristianismo
exige a fé em seus dogmas históricos, ao passo que o pregador liberal pressupõe
uma fé que, para existir, deve expurgar a própria dúvida que dá razão a sua
existência. Noutras palavras: o liberalismo moderno sem os dogmas cristãos se
reinventa. A fé liberal existe em detrimento de uma história que surge como
resquício da “verdade” que supera o mito.31 Logo, a fundamentação histórica do
dogma cristão deve ser objetiva e, não subjetiva. A diferença entre o
cristianismo e o liberalismo moderno consiste em a impossibilidade de
indiferença quanto a tomada de posição à origem dos dogmas.
Fundamentemos,
então, a necessidade de se ter os dogmas ligados à realidade histórica:
(A) “O cristianismo
constitui um fenômeno histórico muito bem definido”
A religião cristã
tem em sua origem a proclamação de uma mensagem tida por verdadeiro relato de
fatos. Lembremo-nos que o apóstolo Paulo não teve com a Igreja da Galácia a
mesma tolerância que houve para com os romanos. Paulo entendeu que a mensagem
dos falsos mestres na Galácia atacaram os fundamentos da fé, ao passo que, em
Roma, a mensagem, ainda que pregada pelos rivais, manteve suas bases. “Nunca
passou pela mente de Paulo que um evangelho pode ser verdadeiro para uma pessoa
e não para outra. [...] Ele estava convencido da verdade objetiva da mensagem
do evangelho”.32
(B) O cristianismo
é, em si mesmo, incongruente se doutrina e história dos relatos da igreja forem
elementos distintos em sua aplicação à fé.33
A própria
terminologia da palavra “evangelho” designa o pertencimento entre doutrina e
história. Evangelho é “boas novas” e, estas consiste em algo ocorrido.
E desde o início, o
significado do que aconteceu foi estabelecido, e quando o significado foi
estabelecido, surgiu a doutrina cristã. “Cristo morreu” – isso é uma referência
histórica; “Cristo morreu pelos meus pecados” – isso é doutrina. Sem esses dois
elementos, unidos de uma maneira indissolúvel, não existe Cristianismo.34
Ora, ao pensar nas
“boas novas” qual mente não se volta ao seu oposto, isto é, ao estado anterior
que lhe serviu de motivo porque ela veio a ser proclamada? Foi a mensagem da
ressurreição como história fatual que deu origem à doutrina. “O mundo seria
redimido pela proclamação de um evento; e com o evento, segui o seu significado;
e o estabelecimento do evento, como seu significado, era uma doutrina. Esses
dois elementos estão sempre juntos na mensagem cristã”.35
(C) O ensino de
Jesus estava ligado ao ensino de uma doutrina
Não precisamos
falar da aplicação que Jesus fazia do Antigo Testamento aos seus
contemporâneos. Todavia, é significativo dizer que ele aplicava as Escrituras
como cumprimento à sua pessoa. Ele próprio não se mantinha fora do seu
evangelho. A aplicação da lei à sua pessoa incluía-lhe como alguém autoconsciente
de sua messianidade. Ele não só se incluía na história, como dizia ser parte
inerente dela. Seja como for que os pregadores liberais descrevam a
escatologia, as palavras de Jesus contidas nela apontarão para um evento no
qual ele mesmo diz ser o agente. “A consciência de Jesus está em todo o
lugar.”36
3.2. Deus e o homem
As duas
pressuposições principais que diferem o cristianismo do liberalismo moderno
são, certamente, o seu conceito sobre Deus e o homem. Já vimos, anteriormente,
que a questão da imanência e transcendência divina são características
fundantes para a economia soteriológica. Ainda que de difícil entendimento, no
Novo Testamento são as duas quem possibilitam a própria ideia da redenção
humana na pessoa de Jesus Cristo. Porém, o liberalismo teológico procura outro
caminho para a salvação dos homens.
(A) Deus
Enquanto o
cristianismo entende o conhecimento de Deus pelo viés da revelação, o
liberalismo moderno ensina o sentimentalismo. Ainda assim, segundo Machen, o
liberalismo é inconsistente, pois mesma a afeição humana é dependente de
dogmas. As afeições não são oriundas de várias observações armazenadas na
mente? É assim que a divindade de Jesus faz sentido. O conceito “Deus” não pode
nos remeter primariamente a Jesus; antes, “a não ser que haja alguma ideia de
Deus independente de Jesus, a confirmação de sua divindade não faz o menor
sentido. Simplesmente dizer que ‘Jesus é Deus’ não tem sentido, a não ser que a
palavra ‘Deus’ tenha um significado antecedente atrelado a ela”.37 Não teve que
ser assim para que os próprios discípulos entendessem o conceito de “Deus” dito
pelo Mestre?
Jesus apresenta aos
discípulos um Deus pessoal e, ainda assim, supremo. A sua religião era baseada
na crença da existência real de um Deus pessoal. A começar pelo próprio termo
“pai”, embora aplicado em diversas religiões, nos lábios de Jesus o termo
implica num relacionamento familiar cujo significado só tem valor em sua
Pessoa.38 Portanto, o próprio conceito que o liberalismo moderno traz de
paternidade universal implica numa perda do senso de transcendência divina.
(B) O homem
Uma vez perdida a
noção da transcendência divina, o lugar do homem é suposto facilmente. Aplicar
ao homem os conceitos tradicionais como, pecado original ou consciência de
pecado, implica em compartilhar com deus de sua natureza mesma.
Assim, a revelação
cede o seu lugar para a excessiva confiança na bondade humana. Isto priva, não
somente a atribuição do mal à imanência divina, como também, elimina qualquer
necessidade de intervenção externa à razão humana. O fundamento do cristianismo
não é tão otimista quanto à bondade humana. “O humanismo cristão é tão mais
elevado – um humanismo fundamentado não no orgulho humano, mas na graça
divina”.39 O cristianismo tem, portanto, outro conceito sobre a natureza
humana. Por isto, ao abandonar o conceito do Deus Vivo e a realidade do pecado,
o liberalismo moderno coloca-se numa posição contrária ao cristianismo.
3.3. A Bíblia
A Bíblia é o
elemento chave na fundamentação da fé cristã. Ela “contém o relato da revelação
de Deus ao homem, que não pode ser encontrado em nenhum outro lugar”.40 As
Escrituras põem o cristianismo como a religião do evento e não de ideias. Pois,
Todas as ideias do
cristianismo poderiam ser encontradas em alguma religião diferente, e ainda
assim não haveria o Cristianismo nessa outra religião, pois o Cristianismo não
depende de um compêndio de ideias, e sim da narração de um evento. Sem esse
evento, de acordo com o Cristianismo, o mundo é totalmente escuro, e a
humanidade está perdida debaixo da culpa do pecado.41
Apelar apenas para o
aspecto da experiência cristã como satisfatório para ser cristão não vale. A
experiência cristã só é de fato válida se confirmada pela crença nos eventos
escriturísticos como realmente fatuais. É por isto que J. Gresham Machen afirma
que “a experiência cristã é corretamente usada quando afirma a evidência
documentária. Mas ela jamais funcionará como substituto para evidência”.42 Fica
claro, pois, que se a Bíblia não for aceita como um relato de fatos verdadeiros
da revelação de Deus, cuja plena inspiração e inerrância é essencial para a
fundamentação da Fé genuína, a religião será outra, mas não a religião
cristã.43
A base para
asseverar a diferença entre as duas religiões pode ser encontrada na própria
consideração que Cristo faz às Escrituras. Se o liberalismo moderno rejeita o
Velho Testamento, os argumentos e o “misticismo paulino”, e se atém somente ao
que Jesus ensinava, pode-se perguntar: a qual regra autoritativa o pregador
liberal se baseia, capaz o suficiente, para distinguir o que pode ou não ser
aceito como oriundos dos lábios de Jesus? Qualquer leitor honesto sabe que as
asseverações de Jesus Cristo sobre si mesmo, sobre Deus e o seu reino têm
aplicações diretas sobre os seus ouvintes. O objetivo de suas palavras só será
alcançado se amarrado ao todo contextual.44
Portanto, é evidente
que essas palavras de Jesus, que devem ser consideradas autorizadas pelo
liberalismo moderno, em primeiro lugar, devem ser selecionadas da grande massa
de palavras preservadas, por meio de um processo crítico. O processo crítico,
certamente, é muito difícil, e, muitas vezes, surge a suspeita de que o crítico
somente retém como palavras genuínas do Jesus histórico aquelas que estão em
conformidade com suas próprias ideias preconcebidas. Mesmo depois que o
processo de refinamento foi concluído, ainda assim o estudioso liberal não
consegue aceitar todas as palavras de Jesus como autênticas; por fim, ele deve
admitir que mesmo o Jesus “histórico”, como o reconstruído pelos historiadores
modernos, disse inverdades.45
Mais uma vez, a
diferença entre a religião cristã e o liberalismo moderno reside no seu
fundamento; isto é, o cristão aceita a Bíblia como verdade objetiva aplicável
em todo o seu conteúdo; crê que ela é magistralmente apropriada para contemplar
todos os eventos históricos da humanidade sem a necessidade de adequações de
conteúdo às novas verdades emergidas da ciência. Pois, “quando a verdade é
considerada somente como aquilo que funciona em um momento específico, então
ela deixa de ser verdade. O resultado é um profundo ceticismo”.45
3.4. Cristo
Se a mensagem das
duas religiões (cristianismo e liberalismo) é diferente, obviamente, a origem
desta diferença se deve a interpretação acerca da pessoa a qual se fundamentam.
Já foi observado,
aqui, a maneira como a igreja primitiva e os apóstolos viam a pessoa de Jesus
de Nazaré. Estes depositaram em Jesus toda a sua fé, como se crê no próprio
Deus. Jesus era tal ponto considerado o objeto de sua fé que os apóstolos
confiaram-lhe o destino de suas almas. Não se observa nenhuma reprovação por
parte dos apóstolos originais à identificação de Jesus como objeto da fé
Cristã, nos ensinos de Paulo. Os evangelhos revelam que Jesus evocava a fé em
si mesmo como Deus. Observemos o argumento:
(A) Jesus não
manteve a sua pessoa fora de seu evangelho
O Jesus histórico,
resultado da redução e demintologiação, acaba por confirmar a expectativas e
percepção que o mestre tinha sobre si mesmo. Suas mensagens informavam aos
ouvintes que a única segurança eterna que poderiam ter, por parte de Deus, era
tendo-O como objeto da fé. Suas pregações, antes de consolo, era a da ira de
Deus que pairava sobre os homens pecadores. Conclusivamente, somente no Filho
os homens seriam salvos.
Cristo Jesus é muito
mais do que um exemplo de fé; é o objeto desta fé. Ele nunca convidou ninguém a
ter como modelo a fé que ele tinha em Deus Pai. Antes, convidou os homens para
crerem nele como o Filho de Deus.
(B) Jesus não era um
cristão
Nietzsche afirmou,
em uma de suas obras, que “no fundo, existiu apenas um único cristão, esse
morreu na cruz. O que desde esse instante se chamou “evangelho” era já o outro
contrário do que Cristo vivera: uma “má nova”.47 Esta crítica de Nietzsche de
alguma maneira influenciou a muitos liberais ao ponto de inverterem a ordem
histórica dos fatos. O fato de Jesus ser o fundador do Cristianismo não faz
dele um cristão. O Cristianismo não poderia ser a sua religião, até mesmo por
questões lógicas. Vejamos:
(i) A consciência
messiânica de Jesus: As experiências de nosso Senhor não podem ser seguidas
pelos crentes em todos os seus aspectos. Ele se intitulava o “Filho celestial
de Deus, que deveria ser o juiz de toda a terra”.48 A menos que Cristo tenha
abandonado o seu caráter santo e humilde, o seu exemplo poderia ser seguido
nisto; ou não. Ele não seria um exemplo digno a ser seguido. Se Jesus tivesse
assumido a sua consciência messiânica tardiamente, como alguns teólogos
liberais afirmavam, este fato o tornaria menos digno ainda de confiança; o
problema residiria, então, no âmbito moral.
(ii) A relação de
Jesus para com o pecado: “Se Jesus está separado de nós pela sua consciência
messiânica, ele está ainda mais fundamentalmente separado pela ausência do pecado
em si”.49 Ele nunca demonstrou consciência alguma de pecado e, nem mesmo,
qualquer um de seus perseguidores apontou-lhe um se quer.50
Esta era a mensagem
pregada pelo cristianismo primitivo: a fé cristã é um meio para se livrar do
pecado. E por si só, fica claro que Jesus não pode ser um cristão, uma vez que,
a própria comunidade cristã primitiva o eximia de pecado. É forçoso mudar a
concepção de salvação do Novo Testamento, quando o que se tem em vista é o que
o Cristianismo significa. Segundo as narrativas neotestamentárias, Jesus
representa bem mais do que uma figura de caráter exemplar; significa o perdão
dos pecados. E, se Jesus era o objeto da fé, por meio de quem Deus perdoava
pecados, ele mesmo não pode ser um cristão, “assim como Deus não pode ser
religioso”.51
(iii) As
reivindicações de Jesus: Jesus exigiu que aqueles que o seguissem estivessem
dispostos a quebrar até mesmo os vínculos mais sagrados. O cristão não entende
o chamado de Jesus como o de um mestre a ser seguido, mas como o chamado de um
salvador a ser obedecido; não um exemplo de fé, mas o objeto da fé.
(iv) O cristianismo
considera Jesus uma pessoa sobrenatural: Machen entende que “um evento
sobrenatural é aquele que acontece pela ação imediata de Deus, no sentido de
não acontecer por um intermediário”.52 Esta definição de milagre apresenta a
necessidade de um Deus Pessoal, ao mesmo tempo em que exclui a necessidade de
causas secundárias. A Bíblia apresenta o milagre como esta ação direta de Deus
na natureza, admitindo, pois, que esta interferência em nada é arbitrária à
ciência. Mas, se tratando de uma ação teísta primária na natureza, as duas
naturezas de Cristo são claramente possíveis de existência no Jesus dos
Evangelhos. É igualmente por isso que negar os milagres de Cristo é negar toda
a sua Pessoa, bem como o próprio teísmo.53
Machen afirma que,
por toda Escritura a mensagem central, isto é, a revelação de Deus na história
mediante seu Filho Eterno, não pode ser considerada verdade se isolada a sua
manifestação sobrenatural. A natureza divina per si a exige assim. Sem os
milagres, pode ser que seja mais fácil crer no Novo Testamento. Porém, aquilo
no qual se creria seria inteiramente diferente daquilo que se apresenta a nós
agora. Sem os milagres, teríamos um mestre; com os milagres, temos um
salvador.54
3.5- Salvação
Haja vista as
proposições anteriores, é lógico que a noção de salvação apresentada pela
teologia moderna (liberal) desenvolverá o sistema soteriológico sobre bases
antropológicas. Nisto se distinguem radicalmente essas duas religiões, pois a
salvação para o cristianismo é ato divino.
A concepção de
pecado universal assume lugar importante, pois, impõe ao homem a condição de
desespero e dependência absoluta em Deus. Esta diferença requer de Jesus uma
manifestação salvadora e não, somente, ética. A ética é, para o Cristianismo,
um motivo desesperador, uma vez que, em pecado, o homem não consegue por si
mesmo se salvar. Machen aponta esta verdade quando critica a hermenêutica
liberal acerca do Sermão do Monte; a moral torna-se relevante e possível
somente se vivida em Cristo.55
Parece que, “não é a
doutrina bíblica que é difícil de entender- realmente incompreensíveis são os
elaborados esforços modernos para excluir a doutrina bíblica por causa dos
interesses do orgulho humano”.56 Por que os liberais atacam a doutrina de
expiação? Machen encontra três motivos:
(1) A sua
dependência histórica
Segundo Gresham,
acatar a cruz de Jesus Cristo é contrassenso aos liberais. Estes procuram
aplicar a fé nos efeitos obtidos pela cruz, mas não na causa em si. Isto dá
maior poder às experiências e os fins práticos, devendo ser estes os desejados,
e não o fator histórico e dogmático da morte do salvador.
Mas, Machen afirma
que as experiências destituídas da história é um mero misticismo, mas nunca
será o Cristianismo. Se o Cristianismo for aceito apenas como uma experiência
religiosa, se tornará incongruente para com a sua própria mensagem. Enfim, não
existe Evangelho sem que o tenha como fato histórico.
(2) A exclusividade
da salvação ‘somente’ em Jesus
A ofensa aos
liberais consiste em admitir a salvação ‘somente’ em Jesus. E aqueles que,
mesmo bons homens, morrem sem Jesus? Machen alude que o problema não reside na
exclusividade da pessoa de Jesus, mas na maneira como a igreja o tem levado.
Segundo ele, “o nome de Jesus é estranhamente adaptável a pessoas em todo o
tipo de contexto”.57 A responsabilidade para com o Evangelho é de confiança
filial.
O liberalismo
moderno pode objetar ainda que, Cristo morrer por todos os homens é um
não-senso de justiça, pois em nada diminui a culpa do pecador; todos os homens
devem ser individualmente responsáveis por seus pecados.
A resposta é
simples: a visão acerca da majestade de Jesus foi perdida. A pessoa de Jesus
não pode ser igualada aos demais homens. Perdida a pessoa divina de Cristo, a
expiação centra-se no homem e, consequentemente, perde todo o sentido. E, mas
uma vez, centralizar apenas um aspecto de Jesus nas Escrituras, ou apenas em
alguns milagres faz com que todo o cerne da religião cristã perca o sentido e
careça de linguagem acessível à razão humana.
(3) A doutrina
cristã da cruz não condiz com o caráter de Deus
Os pressupostos
cristãos acerca da ira e inimizade de Deus contra o homem pecador são
criticados pelos liberais como inconsistente à natureza divina. Todavia, a
visão liberal de pecado está aquém daquilo que o Novo Testamento anuncia.
Perdoar a todos os homens sem a cruz não apaga a sua culpa. A cruz aponta para
a necessidade de o homem não só desejar esquecer o pecado, mas o apagar para
sempre.
Portanto, o conceito
dos liberais acerca da moral está, até mesmo, muito aquém da moral apresentada
nos evangelhos. Não é forçoso, então, considerar que a própria cruz é tanto a
manifestação da ira de Deus sobre os homens quanto a prova de seu amor. “Se
alguém, alguma vez, já esteve debaixo da verdadeira convicção do pecado, essa
pessoa terá pouca dificuldade com a doutrina da cruz”.58
3.6. A igreja
Machen, quando ainda
discute a ideia dos liberais sobre a salvação, afirma que o conceito de fé da
igreja liberal é, essencialmente, fazer de Cristo o mestre da vida. Mas, para
ele, isto anula não só o conceito neotestamentário de graça, mas o da própria
justificação. Logo, se distancia da leitura que os reformadores protestantes
deram da epístola aos Gálatas. Consequentemente, a esperança escatológica da
parousia é outro elemento que, sem os conceitos abordados, é inexistente.59
A igreja do liberalismo
moderno acredita que o que há de útil no cristianismo é a aplicação de
“verdades morais”. Os cristãos, entretanto, crê que a aplicação do cristianismo
é ocorrência de um ato primário de Deus, isto é, regeneração. Deste modo, o
conceito que o cristianismo tem acerca da fraternidade é distinto ao do
liberalismo moderno, não podendo ambos conviverem como uma religião e, óbvio,
mesma instituição.
(A) O cristianismo
não crê na fraternidade/paternidade universal
Salvaguarda a
analogia de irmandade entre os homens como criados por Deus, o cristão
considera como relacionamento fraternal somente aqueles que são redimidos por
Cristo. É necessária a fé em tudo aquilo que os teólogos liberais negam.
(B) O cristianismo
entende a transformação da sociedade possível somente pela Igreja Invisível de
Cristo:60 “A igreja é a resposta cristã mais elevada para as necessidades
sociais do ser humano”. E é sob esta perspectiva que a igreja não apenas se
mantém, mas também, age na sociedade, quer com ações sociais, quer através de
missões.
Todavia, se a igreja
invisível tem em seu corpo dois posicionamentos opostos acerca da pessoa de seu
Fundador e Senhor, a razão de ser deixa de existir. É certo que a igreja tem
como característica uma mensagem baseada nos dogmas do Senhor ressurreto,
divino. Negada tal verdade, o Cristianismo assumirá outra mensagem; isto é, uma
transformação nem sempre possível, pois é baseada somente neste mundo.
Além do mais,
cristianismo e liberalismo seriam igualmente desonestos. Simplesmente, os pressupostos
assumidos por ambas as religiões não podem ser considerados com frivolidade. O
cristianismo assume dogmas que não suportam meias verdades ou que não exija a
exclusividade da fé.61
Quer goste ou não,
essas igrejas estão fundamentadas em credos; elas são organizadas para a
propagação de uma mensagem. Se alguém quiser combater essa mensagem em vez de
propagá-la, não tem direito, não importa quão falsa seja essa mensagem, de
ganhar uma posição vantajosa para combatê-la, ao fazer uma declaração de fé que
não é- que se diga com todas as palavras- honesta. [...] ao perceber que as
igrejas “evangélicas” existentes estão amarradas a um credo com o qual
discorda, a pessoa deve se unir a alguma outra instituição ou fundar uma na
qual ela se encaixe bem.62
O que Machen diz é
que, as igrejas cristãs se unem em torno de uma mensagem baseada na Bíblia. É
ao redor da fé no credo das Escrituras como inspiradas por Deus que as pessoas
se reúnem. As diferenças levantadas entre elas não falha pela falta de definição.63
Isto, todavia, não é possível de se ver quando os liberais se reúnem com os
cristãos. Eles rejeitam as convicções defendidas pelos crentes sem que antes
busque entendê-las. Não é a fé conservadora que tem a “mente estreita”, mas os
liberais.64 Não se trata de heresia, mas de um fundamento outro, que não o da
fé evangélica. Não é próprio da fé cristã, desde o seu início, considerar os
desvios doutrinários assunto primordial a ser debatido?
Portanto, parece
ilógico querer que o liberalismo moderno continue entre os cristãos
considerando-se uma parte dele. “Ele difere do cristianismo em seu conceito
sobre Deus, o homem, a autoridade e sobre o caminho da salvação. E, não somente
difere do cristianismo em teologia, mas também na totalidade da vida.”65
Embora, a crítica de
Machen se refira ao Liberalismo moderno do início do século XX, o que torna
seus escritos contemporaneamente válidos é o fato de tê-los feito sobre as
bases da fé genuinamente cristã. Aquele que julga que esta fé não tem voz no
presente século deve ler os argumentos macheanos a fim de descobrir quão sólida
é a verdade que se vale das Escrituras. Pois, Machen é uma prova de que é
possível, mesmo no século presente, o teólogo, estudante e pastor serem:
eruditos, racionais, piedosos e relevantes; não sem, mas, mormente, se forem
absolutamente fieis à Fé Cristã.
fonte teologia brasileira
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